24 abril, 2024 Sexualidade das pessoas com deficiência é "tabu gigante"
Seminário ajudou a descomplicar um tema de que ainda se fala pouco.
A sexualidade das pessoas com deficiência esteve em destaque na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) no passado dia 17 de abril, no âmbito do projeto de investigação sobre Assistência Sexual.
Ainda hoje, a sexualidade é "um tabu gigante" quando falamos de pessoas com deficiência, tratou de sublinhar a nutricionista Catarina Oliveira, ativista pelos direitos das pessoas com deficiência no seminário internacional "Sexualidades e Pessoas com Deficiência".
Para Catarina Oliveira, a "falta de informação leva ao aparecimento de inúmeros mitos sobre a sexualidade das pessoas com deficiência". Um deles passa por se acreditar que não têm uma vida sexual com prazer. Mas também são vistas como "assexuais", ou, pelo contrário, como "hiperssexuais", apontou a autora da página de Instagram "Espécie rara sobre rodas" que precisa de se deslocar numa cadeira de rodas.
Já o médico de Saúde Pública David Peres, provedor do cidadão com deficiência de Matosinhos que também se desloca em cadeira de rodas, reforçou no seminário o facto de as pessoas não estarem "à vontade para falar deste tema". E isto é algo que se verifica até ao nível dos profissionais de saúde, nomeadamente dos médicos.
"A formação médica continua muito deficitária, sobretudo do ponto de vista da comunicação com o doente", analisou David Peres, salientando que se levarmos essa ideia para o campo da sexualidade das pessoas com deficiência "é o deserto do Sahara".
Catarina Oliveira reforçou também a importância de "uma verdadeira educação sexual", até para que as pessoas, tenham ou não deficiência, entendam que cada qual vive a sexualidade de maneira diferente.
É preciso "encarar a sexualidade como muito mais do que a genitália", referiu a nutricionista, dando o seu exemplo pessoal como pessoa que não nasceu com uma deficiência. "Explorar o meu corpo [com deficiência] obrigou-me a desfocar-me da genitália", analisou.
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Barreiras sociais e físicas podem impedir "acesso à sexualidade"
Há um "somatório" de barreiras físicas e sociais que podem "minar completamente" as possibilidades das pessoas com deficiência em termos de relações afetivas e sexuais.
Muitas vezes, impedem mesmo "o acesso à sexualidade e ao encontro", como sublinhou no seminário a psicóloga clínica Diana Santos, especialista em terapia sexual que integrou o movimento "Sim, nós fodemos".
Diana Santos falou das dificuldades que muitas pessoas com deficiência têm no simples ato de "sair de casa sem ajuda". E "quanto mais dificuldades tiver a pessoa em termos de autonomia, mais castrada vai ser" na sua vida e nos seus direitos, realçou.
Além das questões de mobilidade, há ainda os "conceitos de normalidade" existentes, como destacou a psicóloga, notando que para uma pessoa com um corpo dito "normal", "não faz parte do que se considera como uma coisa natural" apaixonar-se, ou sentir desejo, por uma pessoa com deficiência.
Por isso, Diana Santos sustentou a importância de "desconstruir conceitos de beleza" e de "não focar na doença e sim na pessoa".
De resto, "a diversidade humana é muito grande" e vai para lá do que são corpos normativos, ou não normativos, como destacou David Peres.
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"Direito ao cuidado" inclui a assistência sexual
A assistência pessoal é um auxílio essencial para algumas pessoas com deficiência, como é o caso de Diana Santos - é "alguém que é as nossas mãos e as nossas pernas", salientou a psicóloga no seminário.
Este serviço está disponível a qualquer pessoa com deficiência que precise dele, podendo ser solicitado nos Centros de Apoio à Vida Independente.
É preciso sublinhar que estes assistentes pessoais não realizam serviços sexuais, mas podem, por exemplo, ser "mediadores" para a marcação de encontros amorosos, ou de índole sexual, quando a pessoa tem dificuldades de fala, por exemplo.
A assistência sexual é algo diferente, mas insere-se também no "direito ao cuidado" que é, no fundo, "o direito de ter direitos", como reforçou a psicóloga Karla Garcia Luiz do Instituto Federal de Educação de Santa Catarina (Brasil) que participou no seminário por via online.
Neste campo, um assistente sexual "pode ajudar a níveis mais básicos", por exemplo, "guiando a mão da pessoa com deficiência" durante a masturbação, ou num processo de "autoconhecimento" do corpo, como vincou Diana Santos.
Além disso, xs assistentes sexuais também podem ajudar casais em que ambos os elementos têm deficiência, por exemplo, na questão do "posicionamento" do corpo para terem relações sexuais. E podem, igualmente, fazer sexo com a pessoa com deficiência.
Mas para que tudo isto possa ocorrer com "mais segurança" é importante a "regulamentação" desta atividade, destacou ainda Diana Santos no seminário. Até porque a questão da segurança no contacto com trabalhadorxs do sexo é um aspeto vincado por várias pessoas com deficiência que temem recorrer a estes serviços.
Mas para quem tem receios e não quer pagar por sexo, David Peres sugeriu que as redes sociais "são bons locais para conhecer pessoas". Mas é preciso ter alguns cuidados, nomeadamente para saber se quem está do outro lado é "uma pessoa séria". Isto implica fazer alguns esforços para tentar "perceber quais são as suas intenções".
E num primeiro encontro presencial, também é importante escolher um "sítio seguro", idealmente num "local público", recomenda o médico de Saúde Pública.
Se passarem à próxima fase, é necessário escolher um hotel com quartos adaptados para pessoas com deficiência.
Devotees e o fetiche por pessoas com deficiência
Se para uns, a deficiência é algo aberrante, para outros pode ser um ponto de atração. Há quem tenha fetiche por pessoas com deficiência - são os chamados "devotees".
Mas nem todas as pessoas com corpos não normativos estão dispostas a ter um "devotee" nas suas vidas. Diana Santos e Catarina Oliveira têm a certeza de que não querem relacionar-se com este tipo de fetichistas.
Já David Peres não tem problemas com isso, desde que seja algo "muito bem esclarecido", nomeadamente quanto a "limites" e à "natureza da relação".
Apesar de nunca ter tido qualquer tipo de relacionamento no âmbito deste fetiche, o médico está aberto à possibilidade porque, afinal, "todos temos os nossos fetiches".
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As mães "defiças" e a "justiça reprodutiva"
As mulheres com deficiência são duplamente lesadas pelos preconceitos da sociedade. E estão também sujeitas à "opressão" que ainda existe quanto aos direitos das mulheres, mas, no caso delas, manifesta-se de forma um pouco diferente.
Sabemos que, a partir de uma certa idade, muitas mulheres são confrontadas com as perguntas "quando casas?", "quando vais ter filhos?". "A mim, nunca ninguém me pergunta quando vou ter filhos, ou quando vou casar", lamentou Diana Santos no seminário na FPCEUP.
Neste âmbito, Karla Garcia Luiz que também integra o grupo de trabalho de Avaliação Biopsicossocial da deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, falou de "justiça reprodutiva".
A psicóloga de 39 anos é uma mãe "defiça", termo adotado no Brasil, para falar das mulheres com deficiência que têm filhos. Karla Garcia Luiz precisa de ajuda para se alimentar e se vestir e, por isso, também precisa de ajuda para poder criar a sua filha. O seu principal cuidador é o seu companheiro.
Mas, apesar disso, exerce a sua "independência como mãe", sublinhou, lamentando que as pessoas com deficiência ainda não têm os mesmos direitos que as demais para poderem "decidir sobre os seus corpos e a sua reprodução".
Isto implica decidirem se querem ter filhos, se não os querem ter, e quando os vão ter, bem como poder criá-los com segurança, autonomia e apoio.
"Banalizar" para descomplicar
Apesar de todas as dificuldades, Diana Santos destacou que é preciso "levar as coisas com leveza", até para descomplicar e relativizar certas limitações, encarando-as com bom humor.
"Quantas pessoas é que gostam mesmo de fazer sexo em pé?", foi a pergunta que Diana Santos deixou à audiência do seminário em tom de brincadeira. A psicóloga referiu ainda os espasmos que podem ocorrer com certas incapacidades, realçando que algumas pessoas com corpos normativos também os têm durante um orgasmo.
E depois há "peidos", "vozes estranhas" que são outras manifestações que podem acontecer durante o sexo com todo o tipo de pessoas.
Assim, importa "banalizar" porque "não é um bicho de sete cabeças", sublinhou Diana Santos. E, no fim de contas, o essencial é termos a "capacidade de nos conhecermos a nós próprios", concluiu.
Plano AproXima
O Plano AproXima é um projecto financiado pelo Classificados X que se destina a trabalhadorxs do sexo, independentemente do género, orientação sexual, nacionalidade ou condição social. Temos uma postura livre de moralismos e preconceitos em relação ao trabalho sexual, pois acreditamos que todas as pessoas que decidem seguir esta actividade como profissão são auto-determinadas e devem ver garantidas a igualdade de oportunidades e os direitos fundamentais.
Visita-nos no website https://www.planoaproxima.org/ onde poderás encontrar informação importante e contactar a equipa directamente para esclareceres as tuas dúvidas.