19 março, 2024 Investigadores estudam assistência sexual a pessoas com deficiência em Portugal
Projeto analisa necessidades de pessoas com deficiência e de quem lhes pode prestar serviços sexuais.
A assistência sexual a pessoas com deficiência é um tema ainda novo em Portugal, mas o assunto está a ser estudado na Universidade do Porto. Investigadores estão a recolher testemunhos de pessoas com diversidade funcional e de trabalhadorxs do sexo para deixar "recomendações de políticas públicas" neste âmbito.
Quando falamos em assistência sexual, trata-se do "apoio a pessoas adultas com diversidade funcional em todos os aspetos da sua sexualidade", como explica ao Classificados X
a investigadora Ana Rocha Pinho da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).
Em Portugal, "não existe oficialmente a figura da assistência sexual", como nota. Contudo, há pessoas com deficiência a recorrerem a serviços de trabalhadorxs do sexo. É, neste âmbito, que surge o projeto "Assistência Sexual - Representações Sociais e Políticas Públicas", com o intuito de estudar as necessidades das pessoas com deficiência, ouvindo também quem presta serviços sexuais, com o "grande objetivo final" de "avançar com algumas recomendações de políticas públicas", salienta ainda Ana Rocha Pinho.
No fundo, pretende-se fazer um "mapeamento de fontes para informar” os responsáveis governamentais, como acrescenta o cocoordenador do projeto e professor no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, João Manuel de Oliveira.
Trabalhadorxs do sexo com clientes com deficiência física podem dar testemunho
A ideia é "falar com as pessoas com deficiência, primordialmente interessadas no projeto", mas também "com trabalhadorxs do sexo", nomeadamente para perceber "de que tipo de formação precisariam", como aponta João Manuel de Oliveira.
Assim, os investigadores estão a recolher testemunhos entre trabalhadorxs do sexo para entender como é que as pessoas pensam e falam acerca dos serviços de assistência sexual.
Quem exerce Trabalho Sexual e tem clientes com deficiência física, pode dar o seu contributo, falando do assunto, de forma totalmente anónima e confidencial, seguindo este link.
Se precisares de mais informações, podes entrar em contacto com os responsáveis do projeto pelo email projetoassistenciasexual@fpce.up.pt .
Se trabalhas com clientes com deficiência física, fala-nos da tua experiência
Vai também "haver algum momento em que vamos falar com políticos", realça João Manuel de Oliveira, destacando que será preciso avaliar com estes "de que forma poderíamos implementar estas medidas de assistência sexual em termos de políticas públicas".
Num primeiro momento deste processo de contacto com a política, os investigadores vão organizar um seminário a 17 de abril na FPCEUP, com a presença de deputados, para apresentar os primeiros resultados do projeto.
Neste evento, pessoas com diversidade funcional vão dar o seu testemunho quanto à sexualidade na deficiência. Mas também vão participar ativistas nesta área como Diana Santos, psicóloga clínica e cofundadora do coletivo feminista As Desafiantes.
Marcará ainda presença Catarina Oliveira, outra conhecida ativista, nutricionista, consultora e formadora na área da acessibilidade e criadora de conteúdos digitais no perfil do Instagram "Espécie Rara sobre Rodas", onde fala de vários temas no âmbito da deficiência, nomeadamente de sexualidade.
Formação é essencial para fazer assistência sexual
Este projeto em torno da assistência sexual vai tentar perceber quais são as necessidades das pessoas com diversidade funcional, e também apurar que tipo de oferta existe, atualmente, em termos de serviços sexuais.
Há profissionais do sexo que já trabalham com clientes com deficiência e aqui no Classificados X
também temos anúncios na categoria "Mobilidade Reduzida". Mas, muitas vezes, estxs trabalhadorxs do sexo não têm formação específica para atender estas pessoas cujos corpos não normativos exigem cuidados particulares.
"A ausência de formação é um dos problemas que temos em Portugal", repara João Manuel de Oliveira, considerando que são necessárias "competências específicas" para fazer assistência sexual.
Mas também é preciso ter conhecimento de aspetos práticos como, por exemplo, "em que posição colocar a pessoa", ou "como passar a pessoa da cadeira de rodas" para a cama, sublinha o professor do ISCTE.
Ana Rocha Pinho acrescenta que xs próprixs trabalhadorxs do sexo reconhecem a importância da formação, no sentido de "melhorar a qualidade dos serviços prestados".
A investigadora repara que além da "dificuldade em lidar com corpos não normativos", é preciso considerar também situações que podem ser complexas para quem não tem os conhecimentos devidos, como "tirar uma prótese" a um cliente. Há ainda "condições específicas" que requerem o domínio de técnicas para "pegar no corpo" e "posicioná-lo", evidencia.
João Manuel de Oliveira reforça que pode haver casos "desafiantes", exigindo que xs trabalhadorxs do sexo estejam "altamente treinadxs até do ponto de vista físico", para além de dominarem procedimentos quanto a "respiração, como tocar, onde tocar".
Por outro lado, também é preciso "mais tempo" para prestar a assistência sexual, uma vez que estão em causa "corpos diversos" que "precisam de algumas atenções conforme as especificidades das pessoas", explica ainda Ana Rocha Pinho.
Portanto, "a formação acaba por ser um elemento-chave" quando se pensa em como implementar um modelo de assistência sexual, sublinha a investigadora da FPCEUP.
Em Espanha, há cursos de assistência sexual
Se em Portugal existe um vazio em termos de formação, aqui ao lado, em Espanha, há organizações não-governamentais que têm soluções no âmbito da assistência sexual.
A Associação Tadem Team Barcelona faculta um "Curso básico de acompanhamento íntimo e erótico" que pode ser feito por videoconferência, em grupo ou de forma individual, por um valor de 185 euros (conforme o preço anunciado no site aquando da escrita deste artigo).
Este curso aborda temáticas como "anatomia e fisiologia"; "A aprendizagem da sexualidade: reinterpretando a sexualidade"; ensinamentos sobre "as principais características anatómicas, fisiológicas e neurológicas dos diferentes tipos de incapacidades, bem como as necessidades assistenciais e logísticas no exercício do seu erotismo". Fala ainda de questões legais e éticas no que se refere à sexualidade e à diversidade funcional.
Na Suíça, a organização sem fins lucrativos Corps Solidaires que reúne assistentes sexuais certificadxs neste país, também dá formação a pessoas interessadas em abraçarem esta área, trabalhando diretamente com associações que apoiam pessoas com deficiência.
Esta formação tem uma componente teórica centrada nos conceitos de deficiência, de sexologia especializada, de prevenção de ISTs, de questões de orientação sexual e género, e de leis. Mas também inclui uma componente mais prática com massagens sensuais, comunicação não-verbal e com orientação num primeiro atendimento supervisionado a uma pessoa com deficiência.
Mas, neste caso, as formações são presenciais, na Suíça e em França. E a formação completa custa cerca de mil euros.
Como se faz a assistência sexual?
Segundo a Plataforma Europeia de Assistência Sexual, este conceito refere-se ao "ato de apoiar adultos com diversidade funcional em todo o espectro da sua sexualidade", exigindo que seja desempenhado por profissionais com as “competências necessárias para prestar um apoio de qualidade para uma relação íntima e/ou sexual".
Na prática, há vários modelos de assistência sexual distintos, como nos explica Ana Rocha Pinho.
Por um lado, existem "abordagens mais médicas" em que é mais adequado falar de "terapeutas sexuais" do que de assistentes sexuais, sublinha a investigadora. "A pessoa acaba por ter uma prescrição para a atividade", nota, acrescentando que os responsáveis do projeto da FPCEUP e do ISCTE não se reveem neste modelo porque "a questão não é de todo médica".
Em Espanha, há dois modelos que são aplicados por duas organizações distintas. Por um lado, a Tu manos mis manos apresenta o que Ana Rocha Pinho define como uma abordagem "autoerótica" que passa por disponibilizar uma forma de a pessoa poder aceder ao seu próprio corpo.
Em termos práticos, trata-se de dar "apoio antes, durante e depois da relação sexual", por exemplo, a um casal em que ambas as pessoas tenham deficiências, ou de facilitar a masturbação, como nota a investigadora. Noutros países, fala-se de "ejaculação assistida". Isto significa que "não há interação com o corpo de quem presta assistência sexual" e, portanto, é uma abordagem "limitada", como explica.
O outro modelo é desenvolvido pela já referida Tadem Team Barcelona que deixa "em aberto" a possibilidade de haver contacto sexual direto entre "a pessoa que requer o serviço e quem o vai prestar ", aponta Ana Rocha Pinho.
Neste caso, "não há limitação, poderá haver uma interação sexual" que pode incluir "penetração, sexo oral", ou outras práticas, conforme seja acordado entre os intervenientes.
Falta de regulamentação do Trabalho Sexual é problema acrescido
Ana Rocha Pinho repara que "a assistência sexual acaba por estar enquadrada no mesmo contexto do Trabalho Sexual". Isto significa que, não estando regulamentado o segundo em Portugal, também não se pode falar de regular a primeira.
Neste contexto, estamos a falar de "um mercado totalmente informal, sem estrutura", como evidencia João Manuel de Oliveira, considerando que isso acaba por lesar as pessoas com diversidade funcional que já são altamente prejudicadas pelos diversos obstáculos físicos, e não só, que existem na nossa sociedade.
O professor do ISCTE nota as "questões económicas acrescidas pela sua condição", salientando que os "custos são elevados". Assim, o enquadramento do Trabalho Sexual em termos legais acabaria "por proteger os direitos de pessoas com diversidade funcional", entende Ana Rocha Pinho.
Contudo, o problema é "mais geral", como nota João Manuel de Oliveira, salientando que o projeto acaba também por trazer à tona a falta de "equipamentos sociais" para pessoas com deficiência.
O investigador destaca que, em muitos casos, é impossível ir para um motel, ou para a casa de quem presta serviços sexuais, porque "as barreiras arquitetónicas não permitem". "Há muitos locais da cidade que são totalmente inacessíveis para pessoas com cadeiras de rodas", sublinha.
Ana Rocha Pinho acrescenta que os "obstáculos também têm impacto no estabelecimento de relações" por dificultarem o acesso a "espaços de socialização" e de "convívio com outras pessoas".
Sexualidade das pessoas com deficiência ainda é tabu
A sexualidade é um aspeto que poucas vezes é discutido quando se fala das questões de autonomia, de respeito pelos direitos e pela autodeterminação das pessoas com diversidade funcional. Ainda é um tabu e um assunto desconfortável.
A ativista Catarina Oliveira, de que falámos antes neste texto, queixa-se, muitas vezes, nas suas redes sociais, de que as pessoas a "infantilizam" quando a veem numa cadeira de rodas - como se fosse incapaz de tomar decisões, ou de existir como pessoa autónoma e pensante.
Tem tudo a ver com "o modo como as pessoas com deficiência são representadas", considera João Manuel de Oliveira, notando que são vistas como "seres sem sexualidade à partida". Assim, o assunto é "totalmente subvalorizado", diz.
Ana Rocha Pinho fala de uma "dessexualização da pessoa com diversidade funcional", evidenciando que há "falta de educação sexual" por um lado, e "falta de privacidade", por outro, para estas pessoas viverem a sua sexualidade em pleno e em autonomia.
Portanto, os obstáculos também são "sociais e culturais", destaca a investigadora, sem esquecer os "estereótipos" que existem.
Finalmente, existe também "algum receio de como lidar com a diferença", conclui.
Projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
O "Projeto Assistência Sexual - Representações Sociais e Políticas Públicas" está a decorrer há cerca de um ano, beneficiando de um financiamento de 18 meses da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
A equipa de investigação é liderada por Conceição Nogueira, coordenadora do projeto e professora da FPCEUP. Além do cocoordenador João Manuel de Oliveira e de Ana Rocha Pinho, colaboram também as investigadoras Liliana Rodrigues e Manuela Peixoto do Centro de Psicologia da Universidade do Porto, a investigadora Susana Batel do ISCTE e o professor Diego Lasio da Universidade de Cagliari (Itália).
São ainda consultoras no projeto a professora Marivete Gesser da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), uma especialista na área dos estudos da deficiência, e a professora e investigadora Isabel Crowhurst da Universidade de Essex (Reino Unido) que é especialista em estudos sobre o Trabalho Sexual.
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)