28 März, 2024 As doces ironias da rotina conjugal
César e Cristina aprenderam a fintar a armadilha das relações de longa duração e mantinham a chama.
Costuma dizer-se que a rotina mata a relação. No caso de César e Cristina, a rotina era o que os salvava. Depois de tantos anos, não só tinham aprendido a lidar com ela como a aperfeiçoaram. No final, parecia tudo menos isso, mas era exactamente isso que era: a “sua” rotina.
A vida era a de qualquer casal normal, o stress constante, a luta para pagar as contas, a falta de tempo e disposição, um desgaste absoluto que lhes tirava o humor para qualquer programa remotamente festivo.
Entre os afazeres de ambos e os horários de cada um, mal se viam e quando viam, o mais fácil era cobrar as falhas, culpar o outro, identificá-lo como causa e consequência do peso dos dias.
E, no entanto, de alguma forma aprenderam a fintar a armadilha comum das relações de longa duração. Mesmo num mundo de cinzas, conseguiam manter a chama.
César chegava primeiro a casa e punha-se a arrumar. Nunca havia muito para arrumar, pois o tempo que estavam em casa mal dava para desarrumar. Depois sentava-se no sofá, acendia a televisão e tentava suspirar pela primeira vez no dia, embora raramente chegasse a relaxar.
Cristina chegava uma hora depois e detectava imediatamente tudo o que César não tinha feito, as faltas de consideração e competência típicas do gajo que chega a casa e se põe à frente da TV a coçar os tomates.
Sempre a mesma coisa, caía tudo em cima dela, porque é que ainda se indignava, isso é que não percebia, e isso indignava-a ainda mais.
Não importava que tudo estivesse limpo e as coisas no sítio. Não interessava se era verdade. O ritual dominava a cena...
Primeiro saíam os gestos bruscos, o silêncio do rancor. Depois o barulho crescente das coisas a bater e os queixumes imperceptíveis. Finalmente, a viva voz da razão, acompanhando o som da porta do frigorífico a bater com violência e os ímanes das viagens de sonho a espalharem-se pelos ladrilhos da cozinha:
– Onde é que está o leite que te pedi para trazeres?! Pedi-te uma coisa, uma coisa! Foste falar com o homem por causa dos estores?! Não posso sair primeiro que tu que a cama fica logo por fazer... É incrível, pedi-te uma coisa, uma coisa! Mas não senhor, deve ter coisas mais importantes para fazer...
Não interessava que o leite estivesse na despensa por haver ainda um pacote aberto no frigorífico. Que já ontem lhe tivesse dito que o homem dos estores só podia vir para a semana. Que tivessem saído à pressa de manhã, depois de fazerem serão, porque ambos tinham reuniões logo no início da manhã.
Primeiro era preciso despejar. E Cristina precisava do seu tempo.
Ainda ia para a casa de banho a deitar fumo, quase não precisava de água quente no duche.
Finalmente, voltava para a cozinha sem uma palavra e punha-se a bater em panelas que não ia usar, porque o jantar eram embalagens para meter no micro-ondas. Essas panelas eram o sinal para que César se levantasse do sofá.
O ritual começava sempre na cozinha. Encontrava Cristina de costas voltadas, cara séria, roupão vestido depois do banho, enfim liberta do soutien que lhe esmagava as mamas durante o dia, apenas de cuecas por baixo porque sabia que ele gostava de ter alguma coisa para despir...
Aproximava-se dela por trás e abraçava-a pela cintura, encostando a cara no seu ombro ainda húmido.
Alinhavam aí o compasso da respiração íntima, o tempo que fosse preciso, variava, posto o que lhe beijava o pescoço, a cara, os olhos. Não a largava por um só instante, até a sentir estremecer.
Então, desviava-lhe a saia do roupão, metia-lhe a mão pelas cuecas e enfiava-lhe um dedo no ânus. Cristina nunca estava de cu seco porque a antecipação, os dedinhos da rotina, a humedeciam.
César enfiava-lhe o dedo até ao fundo, até ela gemer, e a restante mão procurava-lhe a bolsa aberta da vagina, que crepitava de desejo anunciado. Era de sumos fáceis e imediatamente o cheiro a sexo subia pelas pregas do roupão, arrepiando-lhe à passagem a espinha, o ventre, o intervalo das mamas, as mamas que ele já agarrava com volúpia, como se não as quisesse largar, esfregando-lhe os mamilos como ela gostava, sempre ansiosos, logo tesos...
Masturbava-a assim, ao mesmo tempo que lhe excitava o corpo todo, ora apalpando-lhe cada poro e superfície, ora bafejando-a com a respiração pesada da tesão crescente, ora beijando-lhe cada pedaço da pele que lhe ia descobrindo até o roupão cair no chão, feliz e inútil.
Então, beijava-a na boca, as línguas a serpentear uma na outra, e transferia-lhe os dedos para a cona, já escancarada e marejada de geleias.
Cristina adorava a masturbação e César fazia-a vir-se abundantemente, conhecia-lhe os botões, disparava-lhe todos os alarmes.
A partir daí, a história nunca era igual, como convém às histórias que se repetem. Os mesmos personagens, sim, os mesmo devaneios, também... Mas para manter o fogo vivo é preciso que o vento varie, alimentando a labareda, mas trazendo ao mesmo tempo a brisa da mudança, a tempestade da surpresa.
Ou ela baixava-lhe as calças e chupava-o, ou espraiava as pernas e deixava que ele a lambesse. Às vezes, as duas coisas.
Finalmente, tinham tempo e esgotavam-se em carícias sem tempo..
Só depois fodiam. Pela frente, por detrás, na cona, no cu, com força ou devagar, com os cabelos repuxados ou beijinhos na nuca.
Gemiam sem pudor, gritavam sem dor, como se naquele acto selvagem lhes fosse permitido libertar toda a fúria acumulada pelo dia, pelas inquietações do trabalho, pelas frustrações da vida. Uma rotina para combater a outra...
Cristina gostava da esporra quente a cair-lhe na pele, cada jacto parecia feri-la como água benta no lombo de um vampiro. Arqueava toda e, não raras vezes, tinha um segundo orgasmo só por isso, no advento da maior de todas as intimidades.
Morriam abraçados, saciados, e assim renasciam todos os dias. A “sua” rotina...
Passavam a noite nus, enrolados no sofá ou na cama, a dizer parvoíces um ao outro, as palavras fáceis do amor, finalmente com espaço para divagar, e dormiam com o pegajo dos fluídos um do outro a colar-lhes o corpo, a arrepanhar-lhes a pele, a arrepiar-lhes o sonho.
Logo nascia mais um dia, de manhã mal se falavam, a pressa era muita, a cama por fazer, a vida era tudo o que tinham tempo para pensar. Despediam-se com um beijo rápido e Cristina dizia-lhe:
– Quando chegares dá um jeito à casa. E compra leite que já quase não há.
Armando Sarilhos
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Armando Sarilhos
O cérebro é o órgão sexual mais poderoso do ser humano. É nele que tudo começa: os nossos desejos, as nossas fantasias, os nossos devaneios. Por isso me atiro às histórias como me atiro ao sexo: de cabeça.
Na escrita é a mente que viaja, mas a resposta física é real. Assim como no sexo, tudo é animal, mas com ciência. Aqui só com palavras. Mas com a mesma tesão.
Críticas, sugestões para contos ou outras, contactar: armando.sarilhos.xx@gmail.com