24 Mai, 2020 Viver como pessoa trans em Portugal: o testemunho de Vasco Sampaio
Jovem activista trans relata a sua experiência de transição e as vivências num contexto nem sempre fácil.
Com apenas 19 anos, Vasco Sampaio é uma das vozes do activismo trans em Portugal. Este estudante que iniciou o seu processo de transição aos 15 anos lamenta que foi vítima de discriminação na Escola Secundária, apontando o dedo à direcção e a auxiliares, numa entrevista exclusiva ao Classificados X
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Classificados X – Antes de mais queria saber como posso/devo identificá-lo? Como pessoa trans? Homem trans? Ou por outra designação que prefira?
Vasco Sampaio - Em termos de identidade de género, identifico-me como trans, mais especificamente uma pessoa transmasculina.
Classificados X - Faz parte da TransMissão: Associação Trans e Não-Binária. Quando foi criada a Associação e qual é a sua grande missão?
Vasco Sampaio - O meu nome faz parte da direcção da TransMissão por motivos legais (estamos em processo de formalizar a associação e é necessário preencher os cargos sociais), mas temos um modo de organização horizontal. A associação foi formada em 2017, depois da Declaração Colectiva Trans pela Nossa Auto-determinação, e o nosso principal objectivo é a defesa dos nossos direitos enquanto pessoas trans e não-binárias e lutar pela auto-determinação e contra a patologização das nossas identidades.
Classificados X - O que é a Declaração Colectiva Trans pela Nossa Auto-determinação?
Vasco Sampaio - Tratou-se de uma declaração assinada por várias pessoas trans pela auto-determinação de género enviada à Comissão da Saúde e à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República. Foi também entregue à Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e ao Ministro Adjunto (titular da pasta da Igualdade) e enviada a todos os grupos parlamentares. Foi dos primeiros momentos de impulso para a lei da auto-determinação de género e protecção das características sexuais (Lei N.º 38/2018). A partir dessa declaração, várias pessoas trans que a tinham assinado formaram a TransMissão um mês depois.
Classificados X - A Lei N.º 38/2018 é vista como bastante progressista, comparativamente com outros países. Acha que é adequada?
Vasco Sampaio - Foi uma lei que trouxe muitos benefícios e avançou bastante a nossa luta pela auto-determinação, mas tem com certeza lacunas e poderia ter ido muito mais longe. As nossas principais reivindicações que queríamos ver incluídas são a despatologização das nossas transições, ou seja, o fim da exigência de diagnósticos de saúde mental (seja de transexualidade, disforia de género, transtorno da identidade de género ou o que lhe queiram chamar) para aceder aos tratamentos que precisamos e a consequente reformulação do sistema retrógrado dos processos de transição; em relação às pessoas trans menores, o acesso à alteração do nome e marcador de sexo no Cartão de Cidadão sem limite de idade, concretizando a auto-determinação para todos; para os estrangeiros, a alteração de documentos emitidos pelas autoridades portuguesas com as mesmas condições que a alteração do Cartão de Cidadão e o direito ao acesso às transições médicas e isenção no Serviço Nacional de Saúde (SNS), tal como os portugueses; em relação às pessoas não-binárias, a longo prazo tirar a menção de sexo no Registo Civil e nos documentos de identificação (como o antigo Bilhete de Identidade que não continha esta menção), a abolição das listas generizadas de nomes e o fim da segregação sexual (hoje em dia binária) em todos os lugares (escolas, desporto, casas de banho, etc.); a facilitação em termos de base de dados hospitalares (permitir a pessoas que aparecem como “homens” aceder a consultas de Ginecologia, etc.); a proibição explícita de qualquer tipo de terapia de conversão, entre outras coisas. Temos muitas reivindicações.
“Quem não cabe na narrativa dos médicos é discriminado”
Classificados X - A questão do acesso ao SNS por parte das pessoas trans é especialmente importante. Há longas listas de espera, o que pode ser muito prejudicial em termos da saúde mental das pessoas. Tem conhecimento directo ou através de terceiros de como decorrem estes processos e de quais são os principais problemas?
Vasco Sampaio - Para aceder à transição médica em Portugal são necessários dois diagnósticos de disforia de género resultantes de duas avaliações clínicas feitas em Hospitais diferentes por equipas multidisciplinares. É ainda necessária a autorização da Ordem dos Médicos. Os principais problemas têm a ver com esta patologização das nossas identidades e das nossas transições. Somos obrigados a submeter-nos a avaliações e ao escrutínio médico, que avaliam a nossa identidade e nos dizem quem somos ou deixamos de ser. As pessoas que não cabem na narrativa que os médicos consideram "certa" são discriminadas e veem o seu acesso a uma transição negado. As pessoas que conseguem "passar" esta etapa deste jogo de convencer os médicos de que sabemos quem somos, vêem-se confrontadas com outro obstáculo - o pedido de autorização à Ordem dos Médicos para prosseguir com as cirurgias. A exigência desta autorização especial não existe com quaisquer outros procedimentos cirúrgicos, é uma barreira exclusiva posta à comunidade trans e não-binária.
Classificados X – Há ainda quem se queixe da falta de sensibilidade dos profissionais de saúde para a situação das pessoas trans? Como comenta essa ideia?
Vasco Sampaio - Sim, é verdade. A maior parte dos profissionais de saúde não sabe lidar nem atender as pessoas trans condignamente. Muitos de nós receiam e evitam ter de se deslocar aos serviços de saúde, exactamente com este medo de sermos discriminados, de não sermos entendidos e tratados com dignidade e respeito pela nossa identidade de género, e acabamos por esperar até às situações limite em que temos mesmo de ir. É urgente os profissionais de saúde a exercer terem uma formação de sensibilização para atendimento às pessoas LGBTI+, em particular às pessoas trans e intersexo, e que os profissionais de saúde em formação vejam estes temas fazer parte do seu currículo porque as situações de transfobia, interfobia e patologização das nossas identidades no meio médico são aberrantes.
Classificados X – Teve algum acompanhamento no SNS durante o seu processo de transição?
Vasco Sampaio - Sim, fiz a minha primeira avaliação no SNS, na Sexologia Clínica do Hospital Júlio de Matos. Tive uma experiência boa em geral e, comparando com os relatos que tenho ouvido de outras pessoas, mas, mesmo assim, foi um processo altamente patologizante e moroso. Fui lá acompanhado durante mais de um ano e meio.
Classificados X – Esse processo deixou sequelas, em termos emocionais e psicológicos?
Vasco Sampaio - Pessoalmente, não me afectou profundamente, porque desde cedo estive muito envolvido na comunidade trans e no activismo pelos nossos direitos, então conseguia reconhecer aquilo como "errado", por assim dizer. Sabia quem era e sabia que existiam outras pessoas como eu. Fui já com as noções todas e não me deixei "moldar" pelos médicos, por assim dizer, mas não é assim com toda a gente...
Classificados X – Teve o apoio da família neste processo?
Vasco Sampaio - Não tive apoio da minha família até aos 17 anos (comecei o processo com 15). Custou-me muito, mesmo muito não ter apoio da minha mãe e a relação com ela tornou-se complicada com o surgimento da minha identidade trans. Foi muito duro para mim e debati-me com isso durante anos. Felizmente, tive amigos que me conseguiram apoiar na escola e depois, ao entrar no activismo, tive um sentido de comunidade maior que me permitiu encontrar algum alívio e resiliência.
Classificados X – Como foi o início do seu processo de transição? É muito jovem, mas foi algo que soube desde sempre? Ou há um momento que identifique como decisivo?
Vasco Sampaio - Sempre soube que era "diferente", mas só consegui dar o nome "trans" a esse sentimento aos 14 anos. O início da puberdade teve um efeito desastroso na minha saúde mental e acabei por ter de ficar internado na Pedopsiquiatria durante dois meses. Foi de lá que me reencaminharam para as consultas no Hospital Júlio de Matos.
“Tive bastantes problemas com a direcção da escola”
Classificados X – E como foi o seu percurso na escola e no seu meio social... Sentiu-se bem aceite? Foi vítima de bullying, de discriminação?
Vasco Sampaio - Assumi-me enquanto trans no 10.º ano quando mudei de escola. O meu 10.º e 11.º anos foram bastante difíceis. Sofri bastante discriminação por parte, especialmente, de auxiliares, de professores menos e pouca de alunos. Quando eu estava no secundário, ainda não tinha saído nem a lei da auto-determinação de género e protecção das características sexuais, nem o consequente despacho que permite a alunos trans usarem o seu nome social na escola. Então, com 15 e 16 anos, sem poder mudar de nome legalmente, sem aceitação familiar e numa escola nova, onde não conhecia ninguém, foi complicado. Tive bastantes problemas com a direcção da escola e cheguei a ter de pedir ajuda e intervenção à Casa Qui, pois a direcção, em vez de me ajudar, só piorava a minha situação e obrigava os meus professores e as minhas professoras a tratarem-me pelo meu nome de nascimento, após eu lhes ter pedido para não o fazerem. Foi complicado e houve bastantes episódios péssimos - o Ministério da Educação chegou a ter de intervir. Depois, no 12.º ano, mudei de casa e mudei também de escola e fiz a mastectomia na primeira semana de aulas, logo muito pouca gente soube que eu era trans, só duas pessoas, penso. Nunca sofri bullying directo da parte de colegas de turma, só fui gozado por outros alunos, mas sempre lutei contra isso. O principal problema foi a transfobia de auxiliares e da direcção da escola.
Classificados X – Em termos civis, não sei se já conseguiu proceder à mudança de nome no Registo Civil. Como é esse processo?
Vasco Sampaio - Sim, alterei o nome e o marcador de sexo em 2018, já com a nova lei - fui das primeiras pessoas a fazê-lo. Apenas dois dias depois da lei sair (penso), já estava à porta do IRN [Instituto de Registos e Notariado] para o fazer. Como era menor, na altura, tive de pedir ao meu Endocrinologista um relatório atestando que me encontrava com a minha capacidade de decisão e fui com a minha mãe para ela autorizar. Na altura, o processo ainda se pagava, então acabei por pagar os 200 euros e mais 50 euros da emissão do Cartão de Cidadão muito urgente.
Classificados X – Como pessoa trans, sente-se especialmente mais vulnerável nesta altura de confinamento por causa da pandemia de Covid-19?
Vasco Sampaio - Sinto-me mais vulnerável por não ter oportunidade de me conectar com a minha comunidade cara a cara. O isolamento tem sido duro para a minha saúde mental, com a quebra de rotinas e a falta de confraternização, mas tento colmatar isso através de conversas online, chamadas de vídeo, etc... Mas, felizmente, tenho o privilégio de não estar num ambiente familiar hostil, onde a minha identidade é respeitada, e muitas pessoas trans não têm este privilégio.
Classificados X – Como é a sua percepção da forma como a pandemia está a afectar as pessoas trans?
Vasco Sampaio - Esta pandemia está a afectar as pessoas trans de formas muito profundas, uma vez que veio marcar ainda mais as desigualdades sociais já existentes. Na Rede de Apoio Trans, Não-binária e Intersexo, temos recebido pedidos de ajuda em relação a alojamento, quebra de rendimentos, falta de acesso a medicação, entre outros. Para além do facto de a comunidade trans ter uma prevalência de doença mental elevada, de estarmos frequentemente em situações laborais precárias, de estarmos em lares abusivos ou não acolhedores de quem somos, são factores que têm o potencial de agravar toda a situação.
Classificados X – Falou da Rede de Apoio Trans, Não-binária e Intersexo. É uma iniciativa da TransMissão?
Vasco Sampaio - A Rede não é da TransMissão, é algo independente composto por pessoas individuais, apesar de muitas pessoas da associação fazerem parte da mesma.
Classificados X – E têm recebido muitos pedidos de ajuda?
Vasco Sampaio - Temos recebido alguns pedidos relacionados com pessoas que tiveram uma quebra de rendimentos e não conseguem pagar a renda, pessoas que viram as suas transições paradas, pessoas que não têm acesso às consultas de Endocrinologia e não conseguem obter as hormonas, entre outros...
Classificados X – Também estão a ser organizados "Encontros online" através da plataforma Zoom. São encontros diários? O objectivo será combater o isolamento social, mas também dar apoio, nomeadamente, àquelas pessoas que possam estar a viver com pessoas que não respeitem as suas identidades trans.
Vasco Sampaio - Sim, são exactamente esses os objectivos. Durante o primeiro mês, foram sessões diárias, mas desde que muitas pessoas da TransMissão têm estado envolvidas na Rede de Apoio Trans, Não-binária e Intersexo, com bastante trabalho, reduzimos a sua frequência para três vezes por semana.
Classificados X – Finalmente, tem alguma mensagem que queira transmitir, seja às pessoas trans que possam estar a viver dificuldades ou àqueles que não respeitam as suas situações?
Vasco Sampaio - Gostaria de reafirmar que apesar de estarmos numa situação de elevada vulnerabilidade, existem apoios e associações que estão dispostas a lutar pelos seus direitos e a construir um sentido de comunidade e um espaço seguro para elas.
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Sobre o Autor
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)