27 maio, 2020 Viver como pessoa trans em Portugal: “Há uma violência estrutural e institucional"
Entrevista com a coordenadora do GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção Trans, Daniela Filipe Bento.
“Colocar soluções onde estão problemas.” Este é o lema de actuação do GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção Trans que faz parte da associação ILGA Portugal. A coordenadora deste projecto, Daniela Filipe Bento, explica ao Classificados X
como a comunidade trans é especialmente vulnerável, enfrentando violências várias no seu percurso.
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Classificados X – O que é exactamente o GRIT - Grupo de Reflexão e Intervenção Trans?
Daniela Filipe Bento - O GRIT é um grupo de interesse da ILGA Portugal e, como tal, não trabalha de forma isolada. Estamos próximos e em articulação com todos os serviços que a associação oferece. Desde o Serviço de Apoio Psicológico, o Apoio Jurídico, o Serviço de Apoio a Vítimas LGBTI, a Linha LGBT…
Classificados X – E qual é o papel do GRIT no âmbito do apoio à comunidade trans?
Daniela Filipe Bento - O nosso funcionamento é bilateral: quando nos chegam (ao GRIT) pessoas a requerer apoio, avaliamos se o apoio comunitário é suficiente. Ou, se pelo contrário, a pessoa necessita de apoio técnico encaminhamo-la para outros serviços da associação (ou até mesmo para accionar outros mecanismos de ajuda e protecção social). Quando o apoio não necessita de seguimento técnico, as pessoas podem recorrer a encontros individualizados e/ou ao Grupo de Partilha e Ajuda Mútua.
Classificados X – O que é este Grupo de Partilha e Ajuda Mútua?
Daniela Filipe Bento – O Grupo nasceu da necessidade de criar um espaço seguro para que as pessoas possam partilhar as suas dúvidas, receios e medos entre pares. É, também, um grupo que visa o empoderamento e potenciar a autonomia de forma a conseguir trabalhar determinados assuntos fora do espaço que é oferecido.
Classificados X – E por que tipo de motivos é que as pessoas trans mais procuram estes grupos?
Daniela Filipe Bento - Muitas vezes, as pessoas contactam-nos apenas porque querem informação de como são os processos, legais e clínicos, e nestes, normalmente, o contacto é isolado. Noutros casos que nos chegam, é visível a necessidade de proximidade à comunidade, mantendo o contacto por longos períodos. No sentido inverso, os serviços também nos podem encaminhar casos quando estes carecem de um apoio comunitário e de pares. Para além disto, e não menos importante, também realizamos sessões temáticas, abertas a todas as pessoas, onde falamos e discutimos vários tópicos relacionados com identidade de género, numa abordagem pedagógica e de sensibilização para as questões de expressão e identidade de género.
Classificados X - Prestam também apoio a pessoas trans que se dedicam a fazer trabalho sexual?
Daniela Filipe Bento - Sim, o GRIT é um grupo dirigido a qualquer pessoa trans e/ou não-binária ou em questionamento identitário. A ILGA tem uma posição muito clara sobre a necessidade de reconhecimento legal e regulamentação do trabalho sexual como uma forma digna e legítima de trabalho e, portanto, todos os serviços e respostas são inclusivas de todas as pessoas, onde naturalmente se integram pessoas trabalhadoras do sexo.
Classificados X - Que tipo de necessidades e/ou problemas enfrentam as pessoas trans?
Daniela Filipe Bento - As necessidades e os problemas que as pessoas trans têm são diversos e transversais a muitas áreas da nossa vida diária. A saúde, a escola, o emprego, a família e a vida social são algumas das áreas que afectam directamente a sua vivência, o seu próprio processo e progresso.
"Consultam-nos sobre o que fazer nas consultas no SNS"
Classificados X – O Serviço Nacional de Saúde (SNS) será uma das áreas onde as pessoas trans enfrentam algumas dificuldades, pelo que apuramos…
Daniela Filipe Bento - De uma forma geral, as pessoas relatam vários problemas com o SNS. Sentem que estão imenso tempo à espera de poder ter consultas trans-específicas, que começar a terapia hormonal é um processo moroso e aceder a cirurgias (para quem o deseja) é também um processo lento (para além da lista de espera para as mesmas). Muitas vezes, observamos que algumas pessoas acabam por recorrer ao sistema privado para realizar as consultas e tratamentos, mas isso implica um gasto financeiro que não está ao alcance da maioria. Por outro lado, não podemos deixar de falar da saúde não trans-específica. Há diversas queixas no acesso a tratamentos diversos, dado que, muitas vezes, as pessoas técnicas de saúde (medicina, enfermagem) não estão capacitadas e preparadas para receber a comunidade, largas vezes acabando por tomar atitudes transfóbicas e abusivas.
Classificados X – Este acesso problemático ao SNS acarreta consequências graves para as pessoas trans...
Daniela Filipe Bento - Este problema é em si mesmo bastante sério porque provoca um distanciamento das pessoas em relação ao sistema de saúde, o que leva a que muitos problemas de índole diversa não sejam acompanhados - em todo o espectro da saúde integral. Neste âmbito, as pessoas procuram-nos para ter conselhos sobre a acessibilidade aos meios de saúde, quais os tempos médios de espera e, também, consultam-nos sobre o que se deve fazer nas consultas. Este último ponto pode derivar de uma desconfiança e medo em relação à implicação médica na decisão que alguém pode ter em relação ao seu próprio corpo, às normas de género, etc.
Classificados X – No caso específico das longas listas de espera no SNS que podem ser especialmente danosas para as pessoas trans, como é que o GRIT tem acompanhado estes casos?
Daniela Filipe Bento - Os casos relacionados com esperas longas para consultas e tratamentos, sejam eles hormonais ou cirúrgicos, são imensos. Esta situação provoca uma grande ansiedade nas pessoas, a falta de perspectiva no futuro e de como o podem programar. Muitas vezes, as pessoas esperam por estes processos para entrar para a escola, para entrar para um emprego ou, simplesmente, para sentirem que estão a viver. Como já referi, esta situação provoca uma mobilidade das pessoas do SNS para o sistema privado, porém, é preciso ter capacidade financeira, o que não é o caso da maioria das pessoas que, em particular, nos chegam. Para além das longas esperas, o tratamento não é, em grande parte das vezes, adequado. É importante falarmos em tratamentos trans-específicos e no que envolve, mas também não podemos deixar de referir que existe uma dificuldade enorme destas pessoas procurarem o SNS, até por outras questões em particular. Sentem que o clima é hostil e que existe uma falta de conhecimento/humanidade enorme para com elas.
Classificados X – Um sector que é fundamental na formação das mentalidades é a Educação. Mas, para alguns jovens trans, as escolas também podem ser espaços de violência e de discriminação. O GRIT tem conhecimento de casos destes?
Daniela Filipe Bento - De uma perspectiva superficial e de um modo geral, a escola continua a ser, para muitas pessoas jovens, o seu local de sociabilização. Nesta perspectiva, a educação é um factor decisivo no crescimento e na integração do eu. Porém, e indo um pouco mais em profundidade, assistimos ainda a uma violência generalizada em relação à comunidade trans. Apesar das medidas governamentais para evitar o bullying dentro das escolas, a verdade é que nos chegam imensas queixas de transfobia, muitas vezes, e infelizmente, apoiadas pelo pessoal docente. Estas agressões e violência são largas vezes de teor psicológico, mas chega também a haver casos de agressão física.
Classificados X – Esse tipo de violência pode, depois, acompanhar as pessoas na sua integração no mercado laboral. Como é que é o cenário, neste âmbito, em Portugal?
Daniela Filipe Bento – O emprego é onde as pessoas, na sua maioria, continuam o seu processo de sociabilização e, teoricamente, deveria ser um espaço inclusivo para todas. No entanto, não o é na generalidade dos casos. Para muitas pessoas, o emprego que têm é a forma de conseguir manter a sua vida, o medo da dispensa é algo transversal a todas as queixas que recebemos. Desde pessoas que querem sair do armário no trabalho e não sabem como o podem fazer, até pessoas que procuram um novo trabalho e não sabem como esta questão deve ser colocada às entidades patronais - sobretudo se o documento identificativo ainda não está de acordo com o nome com que a pessoa se identifica. Apesar de já existirem algumas empresas afirmando-se defensoras da diversidade, ainda é necessário ver políticas internas concretas, políticas que não podem ser opcionais. É, neste sentido, que nos chegam imensas dúvidas sobre como estar numa entrevista de trabalho, como se deve processar o plano de se afirmar dentro de uma empresa onde já se trabalha há vários anos e, sem excepção, como lidar com o abuso e discriminação por parte de colegas e/ou chefias.
"Chegam-nos casos de pessoas totalmente desprotegidas"
Classificados X – Mas os desafios e problemas, para as pessoas trans, podem começar desde logo no seio da família…
Daniela Filipe Bento – Do ponto de vista da família, seja ela nuclear ou afastada, ainda recebemos imensas queixas sobre os ambientes hostis em que as pessoas sobrevivem - muitas vezes, sendo a escola ou o emprego a forma que têm de encontrar um espaço ligeiramente melhor. A verdade é que dada a natureza da nossa história (mas não apenas), determinados valores sobre como se devem reger as famílias e as pessoas, as normas sociais, ainda estão bastante enraizados na nossa cultura. Isso espelha-se nas imensas atitudes transfóbicas que podem acontecer no seio da família. Muitas vezes, chegam-nos casos de pessoas que ficaram totalmente desprotegidas e sem mecanismos de ajuda concretos. Ou casos de pessoas que cortaram totalmente laços com partes da família para conseguirem ter uma vida mais pacífica.
Classificados X- Há, portanto, pessoas trans que vivem situações muito complicadas?
Daniela Filipe Bento – Estes factores somados conduzem a uma enorme precariedade da comunidade. As pessoas têm muitas dificuldades em ter as condições mínimas para viver: ter um lugar onde viver, um tecto, comida e acesso à medicação e consultas. Esta precariedade das redes de afecto e cuidado é reflectida em determinadas estatísticas que correlacionam a vivência de pessoas trans com problemas de saúde mental, nomeadamente depressão e outros. Estes são apenas algumas das necessidades e problemas, apenas a ponta do iceberg. É necessário entender que a violência que estas pessoas sofrem não é apenas entre pares, é uma violência estrutural e institucional que deve ser combatida por todas as pessoas.
Classificados X - Há algum padrão no tipo de pessoas trans que procuram ajuda no GRIT?
Daniela Filipe Bento – As pessoas que nos chegam directamente ao GRIT são de muitas franjas sociais diferentes. Chegam-nos pessoas bem estruturadas e que procuram apenas um espaço de esclarecimento das suas dúvidas, outras que nos chegam mais fragilizadas pelo tecido social e, como tal, requerem mais encontros e beneficiam do grupo de partilha ou dos encontros individuais. É por isto que um dos nossos pilares enquanto grupo é procurar ajuda conjunta através das nossas próprias experiências e discursos. Colocar soluções onde estão problemas.
Classificados X - Nestes tempos de pandemia, notam que as pessoas trans podem estar a enfrentar maiores dificuldades? Algumas terão de partilhar casa com pessoas que podem não respeitar a sua Identidade de Género...
Daniela Filipe Bento – Sim, as dificuldades são muitas e a falta de espaços seguros uma limitação enorme. Nós continuamos o Grupo de Partilha, mas em formato vídeo-conferência, porém, sabemos que, para muitas pessoas, esta é uma limitação: seja pela falta de meios técnicos, seja pela dificuldade em ter um espaço em casa que seja minimamente seguro para poder estar a conversar no grupo. Foi por isso que se notou uma mudança de perfil das pessoas que frequentam o grupo desde o momento em que era presencial (e a versão digital para quem não pudesse aparecer), até ao momento em que todas as pessoas estão a recorrer a técnicas digitais.
Classificados X – Qual é o feedback que obtêm das pessoas?
Daniela Filipe Bento – Este processo tem sido doloroso para muitas pessoas, muitas sentem que é um voltar “para trás” no seu caminho e muitas sentem que são obrigadas a “pausar” (como algumas pessoas dizem) o seu processo, seja interior ou exterior. Com o confinamento, os problemas familiares acentuam-se e as fragilidades aparecem. Já por si só, a situação de confinamento é extremamente penosa, então não se poder viver livremente na sua identidade é de uma frustração profunda.
"Lei de auto-determinação foi um progresso histórico"
Classificados X – Diz-se, muitas vezes, que Portugal tem uma legislação muito progressista no capítulo da Autodeterminação e Identidade de Género (sobretudo, considerando a última formulação da Lei), comparativamente com alguns dos outros países. Concorda com a ideia?
Daniela Filipe Bento – De um modo geral sim, a lei de auto-determinação foi um progresso histórico no reconhecimento da identidade das pessoas trans. Com esta lei, o Estado deu um passo para ser o primeiro a reconhecer que as pessoas trans sabem quem são. Porém, apesar de ter sido um passo positivo que permitiu a muitas pessoas verem a sua identidade reconhecida, existem várias pessoas que ficam de fora desta lei. Para além de que, à altura, apesar do direito à auto-determinação, ainda se tinha de pagar 215 euros de taxa, valor que está para passar a apenas 15 euros (o preço de criar um cartão de cidadania novo). No entanto, pessoas menores de 16 anos continuam a estar de fora, pessoas migrantes, bem como o reconhecimento de outras identidades para além do binário mulher/homem.
Classificados X - E em termos de aplicação prática da Lei e da defesa dos direitos das pessoas trans, como estamos?
Daniela Filipe Bento - A Lei é bastante recente e precisa de um período mínimo de implementação e teste para se poder fazer uma avaliação com resultados concretos e recomendações para as autoridades. Fá-lo-emos em devido tempo, mas ainda não achamos que estejamos nesse ponto. Agora, claro que houve uma necessidade de ajuste de procedimentos e de actualização de conhecimentos. Num período inicial, tivemos muitas denúncias de não aplicação da lei nas conservatórias e, ocasionalmente, isso ainda acontece - principalmente em zonas mais rurais – mas, regra geral, por desconhecimento da legislação.
Classificados X – Para finalizar, há alguma mensagem que queira acrescentar?
Daniela Filipe Bento - É preciso acrescentar que as vidas das pessoas trans são muito diversas, na sua identidade, expressão e na sua forma de vivenciar as experiências. Muitas das perguntas e respostas anteriores desenvolveram-se em torno de necessidades e problemas que pessoas trans têm. No entanto, vale sempre a pena ressaltar que também recebemos, muitas vezes, pessoas que estão em boas condições de estabilidade e que querem, simplesmente, também poder ajudar através das suas experiências. Também há casos onde a família é um elo forte, o emprego está assegurado e a escola respeita como deve respeitar. Esta visibilidade é importante para que outras pessoas possam sentir que para além das dificuldades, há também histórias que nos fazem ter esperança no futuro.
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Sobre o Autor
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)