29 outubro, 2020 A dívida - Parte I
(Com Ilustrações de Xana Pascual)
Ela chegou à hora marcada, o que confirmava estar consciente da seriedade do caso. Menos mal: detesto pessoas que se atrasam!
Toc toc toc!
– Entre!
– Feche a porta e sente-se.
– Deixe-me só acabar esta carta que estive a escrever, imagine, a um amigo que não vejo há 50 anos…
– Era um estupor na altura e continua a sê-lo agora. Finalmente meteu o pé na argola, a vida dá-nos estes pequenos presentes… Pronto. Deseja beber alguma coisa?
– Obrigada. Eu não bebo, senhor doutor.
– Faz bem. Sei que é uma senhora de família, se não fosse não estava aqui. Não suporto a vulgaridade, sabe? Mas admiro o que é genuíno... Percebe o que estou a dizer?
– Não sei…
– Tem quantos filhos, dois? O último tem quantos anos?
– Oito meses.
– Humm… Ainda tem leite?
– Não tenha vergonha, é uma pergunta normal para uma mãe.
– Um bocadinho…
– Interessante.
– A senhora é uma bela mulher. O que eu considero uma mulher verdadeira. Não é afectada, não põe porcarias na cara e não anda praí metida em confusões. Não se põe em bicos de pés e fica em casa com os filhos, como deve. Ao contrário do seu marido, que é, perdoe-me a expressão, um labrego.
– Eu sei, senhor doutor.
– Eu sei que sabe. Toda a gente sabe. Tire a blusa.
– Desculpe, senhor doutor…?
– Ouviu o que eu disse. Tire a blusa e o soutien.
– Obedeça!
– Bello…
– Mais devagar. Temos muito tempo…
– O seu marido tem-me dado dores de cabeça desde há muito, muito tempo... Isso tem que ter uma compensação.
– Mamma mia, que visão! Não há nada mais belo do que as tetas duma jovem mãe…
– …carregadas com o néctar e o calor da vida!
– Deixe-me chegar mais perto de si…
– …e tomar o assunto nas minhas próprias mãos!
– Não via umas tetas tão belas desde a minha jovem mãezinha…
– …quando mamava nela como um bambino feliz. Mhmmmm…
– Ohhh…
– É como beber o leite dos anjos...
– O teu garoto fome não passa de certeza.
– Dio mio, que abundância maternal!
– O que nos leva a assuntos mais prementes: abra as penas!
– Oh, senhor, tenha dó de mim… Sou uma mulher séria!
– Peço desculpa, a falta foi minha que não a avisei com antecedência. Eu falo duma maneira bastante audível e não gosto de me repetir. Quando dou uma ordem, espero que seja cumprida, é só. Sem queixas nem lamentos. Percebeu?
– Sim, senhor…
– Então faça o que lhe digo!
– Abra mais.
– Assim está bem. Quer um conselho? Não me desafie. Sabe bem porque está aqui e sabe que tenho uma posição a manter. Não posso facilitar, percebe? Quando chegamos a esta idade e damos um aperto de mão a alguém, sabemos que é mais que um simples cumprimento. Do outro lado estão permanentemente a avaliar-nos a força e, sobretudo, a fraqueza. Quando permitimos que nos sintam a mão mole… o futuro será duro, muito duro. Temos que nos voltar a afirmar, é como começar do zero cada uma das vezes… Já não tenho idade para isso, percebe? Resta-me governar pelo exemplo.
– O seu marido cometeu o mesmo erro que o meu amigo, meteu-se com quem não devia. Ora eu não odeio o seu marido como odiei o meu amigo durante 50 anos. Isso dá-lhe, acredite, a margem de manobra que o separa, pelo menos para já, de aparecer um dia destes a boiar num rio qualquer. Ao pé do meu amigo. Percebe? Então tire as mãos da cona. Quero vê-la.
– Oh…
– Então, que tolice é essa? Vá, seque as lágrimas. Uma família só suporta um tolo e na sua essa posição já está ocupada pelo seu marido. A senhora é mas forte do que isso.
– Está aqui, não está? Isso demonstra como é muito mais valente do que ele. Nós os dois fazemos o que é preciso, porque ele não é capaz. Ele não consegue assumir as consequências da sua irresponsabilidade. Isso deixa-nos a nós, os adultos, a responsabilidade de resolver a questão. Porque na vida temos que ser responsáveis, não concorda?
– Sim, senhor doutor.
– Então limpe a cara e levante mais a saia. E tire a mão.
– Bello. Agora tire as cuecas.
– As… cuecas, senhor…?
– Não me obrigue a repetir, já lhe disse. Não vai gostar da pessoa em que me transformo quando me obrigam a gastar o tempo redundantemente. Vou fazê-lo uma última vez e a partir daí as consequências serão consigo. Percebeu?
– Sim, senhor.
– Então tire as cuecas!!
– Sim, senhor doutor…
– Mais devagar…
– Não tenha pressa, já lhe disse que temos todo o tempo do mundo. Não vamos a lado nenhum enquanto as nossas contas não forem acertadas. E ainda tenho muitos créditos até que esse momento chegue.
– Isso, tenha calma, relaxe o corpo, abra a alma… Só assim terei um sentimento proporcional de justiça.
– O quê? Agora não! Diga-lhe que volte noutro dia, hoje não atendo mais ninguém. Sai daqui e fecha a porta!
– Onde é que nós íamos…?
– Ah, levante as pernas e abra os lábios! Não se faça de sonsa, os lábios de baixo! Use os dedos.
– Isso!
– Dio mio… Che bella figa!
– Tenho que dizer-lhe, senhora: tem dois buraquinhos maravilhosos! Fazem-me sonhar!
– Toque-se!
– Isso… Porca miseria, está a tirar-me do sério! Não aguento mais…
Armando Sarilhos
Armando Sarilhos
O cérebro é o órgão sexual mais poderoso do ser humano. É nele que tudo começa: os nossos desejos, as nossas fantasias, os nossos devaneios. Por isso me atiro às histórias como me atiro ao sexo: de cabeça.
Na escrita é a mente que viaja, mas a resposta física é real. Assim como no sexo, tudo é animal, mas com ciência. Aqui só com palavras. Mas com a mesma tesão.
Críticas, sugestões para contos ou outras, contactar: armando.sarilhos.xx@gmail.com