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17 Mayo, 2020 A liberdade de ser. Viver como pessoa trans em Portugal

Uma grande reportagem do X no Dia Internacional contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia.

Assinala-se, neste domingo, dia 17 de Maio, o Dia Internacional contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia. Para vincar a importância da luta contra todo o tipo de preconceitos e discriminações, o Classificados X lança o primeiro de uma série de artigos sobre a comunidade trans portuguesa. Leia já de seguida e não perca os próximos textos!

A liberdade de ser. Viver como pessoa trans em Portugal

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Portugal percorreu um longo caminho desde o trágico assassinato de Gisberta Salce Júnior, uma trans brasileira, imigrante em Portugal. Em 2006, a mulher de 45 anos foi espancada, violentada e humilhada por um grupo de 14 adolescentes, ao longo de vários dias, num prédio abandonado, no Porto, onde ela vivia como sem-abrigo. Acabaram por a atirar a um poço de água, morrendo afogada.

Ex-trabalhadora do sexo e contaminada com o VIH, Gisberta tornou-se no rosto da violência e da discriminação contra a comunidade trans em Portugal. O caso despoletou o debate sobre a transfobia no país. Durante o julgamento dos jovens, numa espécie de violência final contra a mulher trans, ela foi sempre tratada por "Gisberto" porque era esse o seu nome de registo civil.

Volvidos 14 anos, muito mudou no país, nas mentalidades e até na Lei quanto às questões de Identidade de Género. Desde 2011 que deixou de ser necessário recorrer a um tribunal para alterar o nome e o sexo no registo civil. Mas, apesar dos progressos, a legislação ainda não inclui as Gisbertas que caminham pelas calçadas portuguesas - as pessoas imigrantes sem autorização de residência ainda não podem mudar o nome no Registo Civil.

Género vs Identidade de Género vs Orientação sexual

O sexo biológico com que nascemos determina aquelas que são as características físicas tipicamente associadas a um homem ou a uma mulher. Nalguns casos, há pessoas que nascem com um sexo biológico sem características femininas ou masculinas bem definidas.

Por outro lado, é preciso notar que o género determina uma série de construções sociais sobre as pessoas que orienta meninos e meninas a seguirem determinados caminhos e a vestirem de certas formas desde a nascença. Mas nem sempre esse género socialmente atribuído, em função do sexo biológico, corresponde à identidade de género da pessoa.

A identidade de género tem a ver com a noção do próprio corpo que as pessoas têm de si mesmas e nem sempre corresponde ao sexo biológico. As pessoas trans são aquelas que não se identificam com o sexo atribuído à nascença, tendo uma identidade de género masculina, feminina ou não-binária (uma série de identidades que não se encaixam no binário de género).

Há ainda que considerar o conceito de expressão de género que corresponde à forma como a pessoa se manifesta publicamente, seja por via do nome, da roupa, do corte de cabelo e/ou dos comportamentos e características físicas que apresenta.

As pessoas cisgénero são aquelas que se identificam com o género que lhes é atribuído desde o nascimento, apresentando uma identidade de género e uma expressão de género compatíveis com a perspectiva social que existe relativamente ao seu sexo biológico.

Há ainda o conceito de pessoas não-binárias que são aquelas que não se identificam com nenhum dos géneros.

No meio deste caldo de termos, é preciso ainda esclarecer que a orientação sexual não tem nada a ver com identidade de género, nem com género. É, simplesmente, a inclinação que uma pessoa tem em termos de atracção sexual, afectiva e/ou emocional por pessoas do mesmo género, de outro género e/ou de mais do que um género - no fundo, somos todos pessoas que gostam de pessoas. A heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade são as tendências sexuais mais dominantes. Também há pessoas assexuais.

O que diz a Lei da auto-determinação da identidade de género

A Lei n.º 38/2018 assegura o direito à auto-determinação da identidade de género e à expressão de género, protegendo as características sexuais de cada pessoa. A justiça portuguesa já admitia a mudança de sexo e de nome no Registo Civil ao abrigo da Lei n.º 7/2011 que a Lei n.º 38/2018 veio substituir.

Mas essa Lei de 2011 só permitia a mudança de sexo para maiores de idade e a quem fosse diagnosticada uma "perturbação de identidade de género". Era, assim, necessário apresentar um relatório médico redigido por uma equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica que deveria atestar esse "diagnóstico de perturbação".

Com o evoluir das mentalidades e as mudanças que foram ocorrendo a nível internacional, nomeadamente com a Organização Mundial de Saúde a excluir a transexualidade da lista de doenças mentais, Portugal acompanhou essa tendência, no sentido de afastar estigmas e preconceitos.

Assim, surgiu a Lei n.º 38/2018 que eliminou a necessidade de apresentação do referido relatório clínico a atestar o "diagnóstico de perturbação de identidade de género", alargando também a possibilidade de mudança de sexo a menores de idade, com idades entre os 16 e os 18 anos, através de pedido apresentado pelos seus representantes legais (pais ou tutores).

A nova Lei ainda obriga à apresentação de um relatório médico, no caso dos menores, por algum profissional certificado pela Ordem dos Médicos ou inscrito na Ordem dos Psicólogos, mas este documento só deve atestar a capacidade de decisão da pessoa, bem como a sua vontade informada, sem que tenha que referir qualquer tipo de "perturbação". A Lei reforça que este relatório médico deve considerar o superior interesse da criança, ao abrigo da Convenção sobre os Direitos da Criança, e o seu grau de autonomia.

As pessoas maiores de idade podem abrir o processo de mudança de sexo e nome no Registo Civil, desde que tenham a nacionalidade portuguesa e que não estejam interditadas ou inabilitadas por anomalia psíquica, sem precisarem de qualquer documento médico.

Em momento algum, podem ser solicitadas às pessoa trans provas de que se submeteram a cirurgias de reatribuição de sexo ou a quaisquer tipos de procedimentos médicos ou tratamentos como requisito para a mudança do registo civil.

A Lei também determina que as pessoas trans devem ter acesso, através do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a "tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza, destinadas a fazer corresponder o corpo à sua identidade de género". Porém, esse acesso exige autorizações médicas, o que pode, em muitos casos, tornar as coisas ainda mais demoradas e complicadas.

A polémica do "despacho das casas de banho"

Em termos da Educação, a Lei nº 38/2018 determina que o Estado deve zelar pela defesa do direito à auto-determinação da identidade de género e expressão de género, adoptando medidas que proíbam quaisquer formas de discriminação e de estigmatização das pessoas trans.

Neste âmbito, houve muita polémica com o chamado "despacho das casas de banho" que incluía orientações do Governo para as escolas que visavam a aplicação da Lei no sentido de prevenir a discriminação, de intervir sobre situações de risco e de protecção da identidade de género das crianças e dos jovens.

Este despacho incluía, entre outras recomendações, a indicação de respeito pelo uso do nome auto-atribuído pela criança ou jovem, mesmo antes de este ter sido alterado no registo civil, de respeito pela utilização de vestuário com que se sinta mais confortável, ao abrigo da sua identidade de género, e referia ainda que deveria ser permitido o acesso às casas de banho e balneários em função dessa mesma identidade de género.

O despacho gerou muita polémica, sobretudo no que se refere à questão das casas de banho e dos balneários, com muitas críticas de alguns partidos e de pessoas de várias esferas da sociedade.

"Situações de transfobia no meio médico são aberrantes"

"A lei de auto-determinação foi um progresso histórico no reconhecimento da identidade das pessoas trans", considera em declarações ao Classificados X a coordenadora do Grupo de Reflexão e Intervenção Trans (GRIT) da Associação ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, Daniela Filipe Bento.

"Com esta lei, o Estado deu um passo para ser o primeiro a reconhecer que as pessoas trans sabem quem são. Porém, apesar de ter sido um passo positivo que permitiu a muitas pessoas verem a sua identidade reconhecida, existem várias pessoas que ficam de fora desta lei", lamenta Daniela Filipe Bento.

O mesmo considera Vasco Sampaio, activista trans de 19 anos. "Foi uma lei que trouxe muitos benefícios e avançou bastante a luta pela auto-determinação, mas poderia ter ido muito mais longe", refere em declarações ao Classificados X.

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Foto: Vasco Sampaio, jovem trans e activista, fotografado por Pedro Gomes Almeida (Foto cedida).

Vasco Sampaio, que iniciou o seu processo de transição com 15 anos, considera que continua a existir a "patologização das identidades" das pessoas trans, lamentando o facto de ser necessária uma "autorização" da Ordem dos Médicos "para prosseguir com as cirurgias".

"A exigência desta autorização especial não existe para quaisquer outros procedimentos cirúrgicos, é uma barreira exclusiva posta à comunidade trans e não-binária", queixa-se. Uma mulher cisgénero que queira colocar implantes mamários ou realizar outras cirurgias estéticas não precisa de qualquer avaliação, ao contrário de uma mulher trans que precisa de passar por um processo burocrático que pode ser moroso, recorda.

"As pessoas que não cabem na narrativa que os médicos consideram "certa" são discriminadas e vêem o seu acesso a uma transição negado".

Vasco Sampaio

Este jovem trans queixa-se de que as "situações de transfobia, interfobia e patologização" no meio dos profissionais de saúde "são aberrantes". "A maior parte dos profissionais de saúde não sabe lidar nem atender as pessoas trans condignamente", diz, realçando que muitas "receiam e evitam ter de se deslocar aos serviços de saúde" devido ao "medo" de não serem "entendidas e tratadas com dignidade e respeito".

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Também Kiki Pais de Sousa, empresária e dona  da SaunApolo 56 e uma das vozes mais reconhecidas do activismo, nesta área, em Portugal, considera, em declarações ao Classificados X, que "há uma falta de respeito muito grande pelas pessoas trans" no meio médico, reflectindo "uma insensibilidade" para com "o sofrimento que têm".

"Acham que é um capricho, que é uma doença mental. Falam sem conhecimento de causa."

Kiki Pais de Sousa

Daniela Filipe Bento denuncia, igualmente, "atitudes transfóbicas e abusivas" de alguns profissionais de saúde, apontando que as pessoas trans "sentem que o clima é hostil" no SNS. A coordenadora do GRIT vinca que há pessoas trans que têm "receio quando vão ao SNS", ficando "sem saberem como se comportar", dada a "implicação médica na decisão que alguém pode ter em relação ao seu próprio corpo".

Em 2019, foi criada a Estratégia de Saúde para as pessoas LGBTI+, visando preparar os profissionais de saúde para o atendimento às pessoas trans e intersexo. Mas não se sabe exactamente como e se esta estratégia está a ser implementada.

Problemas do SNS afectam gravemente as pessoas trans

Para lá da insensibilidade e da discriminação, há ainda que contar com as longas listas de espera do SNS, o que pode ser complicado para pessoas que enfrentam situações de muita vulnerabilidade emocional e psicológica.

Vasco Sampaio foi acompanhado na Sexologia Clínica do Hospital Júlio de Matos durante mais de um ano e fala de uma "experiência boa em geral", mas, "mesmo assim, foi um processo altamente patologizante e moroso", conta ao X.

Já Kiki Pais de Sousa evitou o SNS quando decidiu fazer a cirurgia de redesignação sexual ou de reatribuição de sexo. Fez a operação em 2015, no Hospital de Jesus, a clínica privada do Dr.º Décio Ferreira que é considerado uma referência nesta área, não só em Portugal como também no estrangeiro. Ele "reformou-se" do SNS em 2011, deixando um vazio por preencher, dada a sua experiência e competência nesta área.

"Sabendo dos inúmeros problemas e lacunas existentes no SNS, eu nem sequer pus a hipótese de iniciar o que quer que seja no SNS."

Kiki Pais de Sousa

"Tenho conhecimento de algumas pessoas que, infelizmente, não têm recursos económicos e que têm de estar à espera e, muitas vezes, têm cirurgias marcadas e nos dias das cirurgias, por causa de situações variadas, cancelam-nas e mandam-nas para casa", relata Kiki Pais de Sousa ao X.

"Em termos emocionais e psicológicos, é um processo bastante grave", acrescenta, citando casos de "tentativas de suicídio" e "depressões". "Porque as pessoas estão em sofrimento", vinca Kiki Pais de Sousa.

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Foto: Kiki Pais de Sousa, empresária e mulher trans, em primeiro plano. (Facebook)

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"Custou-me muito não ter apoio da minha mãe"

A falta de apoio familiar é outro factor de grande desestabilização no seio da comunidade trans. Há pessoas que ficam "totalmente desprotegidas e sem mecanismos de ajuda concretos", "ou casos de pessoas que cortaram totalmente laços com partes da família para conseguirem ter uma vida mais pacífica", como explica ao X a coordenadora do GRIT.

"As pessoas têm muitas dificuldades em ter as condições mínimas para viver: ter um lugar onde viver, um tecto, comida e acesso à medicação e consultas", constata Daniela Filipe Bento, falando de uma "precariedade das redes de afecto e cuidado" e concluindo que pode levar a "problemas de saúde mental".

No fundo, algumas pessoas trans passam por um misto de "violência estrutural e institucional", encontrando-se completamente sozinhas, destaca a responsável do GRIT.

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Vasco Sampaio assume que não teve o apoio da família até aos 17 anos. "Custou-me muito, mesmo muito não ter apoio da minha mãe e a relação com ela tornou-se complicada com o surgimento da minha identidade trans", confessa ao X, frisando que "foi muito duro", mas que teve a ajuda de amigos.

O activismo também permitiu a Vasco Sampaio ter "um sentido de comunidade maior" para encontrar "alívio e resiliência", como aponta.

Mas "também há casos onde a família é um elo forte, o emprego está assegurado e a escola respeita como deve respeitar", repara Daniela Filipe Bento, considerando que há "histórias que nos fazem ter esperança no futuro".

Kiki Pais de Sousa não sentiu essa rejeição familiar e não duvida de que isso foi fundamental para o seu percurso positivo. "Faço sempre um apelo às famílias que têm pessoas trans, pessoas de diferentes orientações sexuais, que respeitem, que abracem, que acarinhem os seus familiares", diz a empresária.

"Faz toda a diferença o amor."

Kiki Pais de Sousa

 

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Gina Maria

Gina Maria

Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.

"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]

+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas) 

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