08 July, 2021 Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte II
Acompanhe a segunda parte da entrevista com essa Doutora em Psicologia...
Conforme prometido, aqui segue a segunda parte da entrevista com a Doutora em Psicologia Alexandra Oliveira. Dividimos por partes para que a leitura não ficasse cansativa. Vamos então seguir a conversa...
Suzana F. - Quando um trabalhador do sexo chega ao seu médico de família e diz que está com problemas para dormir, tem ansiedade e sente-se apático, esse médico tem a preocupação de encaminhar para um psicólogo ou para um psiquiatra para fazer o tratamento dessas doenças de foro mental?
Alexandra Oliveira - Eu não posso falar pelos médicos, nem tenho conhecimento sobre os seus procedimentos, mas acho que devem fazer com um trabalhador do sexo o mesmo que fazem com os restantes utentes, porque o sistema de saúde não pode fazer distinções entre o trabalhador do sexo e as outras pessoas. E se a alguém diz que tem esses problemas, o que o médico tem que fazer é adequar a resposta ao tratamento do problema. Primeiro tem que fazer uma avaliação e perceber se a pessoa está a fazer um relato adequado da sua situação, depois encaminhar para um profissional mais especializado, neste caso um psicólogo ou psiquiatra, e ver se a pessoa precisa de uma medicação específica. Acho que tem que fazer como faz com outra pessoa qualquer.
Suzana F. - Eu pergunto porque chegou ao meu conhecimento uma informação que me deixou muito chocada, que é a facilidade com que as pessoas têm acesso a medicações controladas, como antidepressivos e ansiolíticos, já que o médico de família tem autorização para prescrever esse tipo de medicação. Em comparação com o Brasil, a única pessoa que está apta para prescrever qualquer tipo de medicação desse tipo é um psiquiatra, ou seja, esses remédios de uso controlado nem um psicólogo ou médico de família podem prescrever. Isso foi algo que me deixou muito surpresa porque se as pessoas têm acesso a essas medicações de forma fácil e em pouco tempo, nós teremos não só trabalhadores do sexo mais viciados nestes tipos de medicação, mas as pessoas em geral, ou seja, com o tempo teremos uma população viciada nesses remédios.
Eu acredito que com esta questão da pandemia muita gente teve problemas emocionais, conforme você comentou, e a quantidade de pessoas que disse para o médico de família que estava com ansiedade ou depressão e foi prescrito um remédio de uso controlado deve ter sido imensa...
Alexandra Oliveira - Sim, isso sei também, quer pelo que vejo na comunicação social, quer pelo que eu já ouvi de médicos. Na comunicação social já saíram notícias nesse sentido, a dizer que durante a pandemia aumentou o consumo de ansiolíticos e antidepressivos em Portugal. Recentemente, um médico dizia-me algo do género: "os médicos não têm mãos a medir para receitar ansiolíticos e antidepressivos porque as pessoas todas estão a precisar e pedem". Portugal é um país com um nível de consumo de ansiolíticos muito elevado.
Suzana F. - Os Conselhos de psiquiatria e psicologia, mas principalmente o de psiquiatria, não poderiam intervir de alguma forma nisso e tomar uma posição mais à frente?
Alexandra Oliveira - Pois, não sei… Mas lembro-me que houve uma altura em que isso foi discutido em Portugal e penso que houve até uma tentativa de fazer essa alteração, de restringirem a prescrição de ansiolíticos por parte dos médicos de família. Tenho a recordação de ter ouvido isso, acompanhei apenas pela comunicação social, mas não é nada que faça de mim uma especialista para falar sobre isso. No entanto, julgo que também seria importante que antes da abordagem medicamentosa, houvesse uma abordagem psicoterapêutica e, para isso, era crucial que existissem mais psicólogos a trabalhar nos cuidados de saúde primários.
Suzana F. - Eu ia mesmo perguntar se isso foi deixado de lado porque as pessoas ainda consideram procurar por terapia ou procurar por um psiquiatra "coisa de maluco".
Alexandra Oliveira - Não seria essa a razão para que isso não avançasse. Embora as coisas estejam a mudar, muitas pessoas ainda fazem essa associação entre apoio psicológico ou psicoterapêutico e doença mental, quando nem sempre é isso que está em causa. A profissão de psicólogo é mais ou menos recente, ou seja, tem algumas dezenas de anos, não é como a medicina que tem muita tradição, portanto é natural que ainda seja olhada com alguma desconfiança. Mas acho que, cada vez mais, essa imagem negativa que é tida dos profissionais de psicologia tende a atenuar-se, porque as pessoas vão tendo contacto e conhecem casos de intervenções de psicólogos que correram bem, que tiveram bons resultados, seja na escola, porque veem uma intervenção com os filhos, ou seja em outros contextos e a diversos níveis. E, portanto, penso que já não há tanto essa ideia ou que cada vez há menos que "quem vai ao psicólogo é porque é maluco". Porque um psicólogo é muito mais do que isso, há muitas áreas e não tem que intervir somente na saúde mental, nem só nos déficits, tem um trabalho muito amplo.
Os psicólogos precisam de estar mais nos hospitais, nos centros de saúde, nas escolas. Ainda é uma profissão que está a ganhar espaço, ainda há poucos profissionais da psicologia a trabalhar em lugares-chave, como os que acabei de referir, e os que trabalham nessas áreas, não conseguem dar vazão a tantos pedidos de tantas pessoas que pedem ajuda.
Suzana F. - Sim, acredito que mesmo que ainda exista um pouco de preconceito, do ano passado para cá, esses números devem ter aumentado bastante.
Alexandra Oliveira - Sim, e eu acho que o pior ainda está por vir, se calhar daqui para a frente vai ser ainda pior e talvez quando tudo isto passar é que se vai começar a perceber quais foram as sequelas psicológicas, não físicas, que isto deixou, nomeadamente nas crianças e em nós todos. Enfim, mas estava a pensar nas crianças privadas da socialização, nos adolescentes, nas pessoas que agora têm medo de sair porque estiveram muito tempo fechadas em casa e se sentem inseguras. É natural que depois se perceba que teve um impacto terrível no mundo todo.
Suzana F. - Devido à multiplicidade de problemáticas vivenciadas pelos trabalhadores mais vulneráveis, relatadas em algumas reuniões de trabalhadores sexuais e também evidenciadas pelo meu estudo, onde mostra-se que mais de 45% tiveram problemas como depressão, ansiedade e estresse crônico, sendo a depressão a maior quantidade e que 44% destas pessoas não recorrem a ajuda profissional por falta de confiança; que ferramentas ou sugestões poderíamos utilizar para que os profissionais do sexo pudessem recorrer em segurança a apoios psicológicos?
Alexandra Oliveira - Essa questão da falta de confiança remete para aquilo que estivemos a conversar no início. O que vocês do MTS podem fazer enquanto colectivo para ajudar as pessoas é informá-las sobre os serviços que estão disponíveis e que estão especificamente direcionados para trabalhadores do sexo. Vocês podem ter uma listagem actualizada com todos os projectos e programas que existem pelo país todo e disponibilizar para os trabalhadores do sexo, isso é uma garantia de que não tenham que esconder o que fazem e de que serão tratados com respeito.
Fiz um pequeno estudo relacionado com questões de saúde e perguntava aos trabalhadores do sexo o que eles faziam para contornar algumas situações, como, por exemplo, quando eram mal atendidos no centro de saúde que estratégias usavam. Cheguei à conclusão que muitas pessoas conhecem médicos que são “sex worker friendlies”, ou seja, médicos e outros profissionais, como os enfermeiros, que são apropriados com os trabalhadores do sexo, independentemente da sua atividade, que não julgam, nem causam danos e que referenciam esses profissionais de saúde a outros trabalhadores do sexo - funciona de forma passa-palavra: como “eu já fui a este médico e ele não tem qualquer preconceito, vai lá também”. Isso pode funcionar enquanto colectivo. Mas aí já estou a falar sobre a procura de serviços privados, porque eu também percebi que há muitas pessoas que preferem recorrer aos serviços privados do que ao público, se tiverem dinheiro para isso, naturalmente, pela questão de terem mais confiança, não no sentido de competência, mas da forma como são tratadas e de se sentirem mais à vontade para dizerem o que fazem.
Vocês, enquanto coletivo, podiam identificar os locais que são mais amigáveis dos trabalhadores do sexo, por exemplo, em Lisboa, o Espaço Intendente do GAT. Este é sobretudo um centro de rastreio, mas fazem atendimento, têm médicas que fazem um atendimento especializado e muito correcto às pessoas que fazem trabalho sexual. Ou seja, é possível identificar estes sítios e difundir essa informação pelos restantes trabalhadores do sexo.
Depois é possível outras estratégias através de um trabalho mais global, alargado ao nível da sociedade, mas isso não é imediato. Era preciso ter um trabalho muito grande de sensibilização da sociedade para a opressão a que os trabalhadores do sexo têm sido sujeitos ao longo da história, que tentasse desconstruir os estereótipos e os preconceitos, que tentasse trabalhar essa ideia negativa que existe em relação ao trabalho sexual. Isso é um trabalho mais alargado que não é para a Suzana, nem para mim, mas acho que cada um de nós pode tentar fazê-lo nos seus pequenos meios e através do ativismo político.
Acho que era mesmo necessário esse trabalho de sensibilização para que diminuíssem os estereótipos e que permitisse que os diferentes profissionais olhassem para os trabalhadores do sexo como olham para as outras pessoas. Isso pode parecer uma coisa mais utópica, mas acho que é preciso coragem da sociedade para enfrentar isso, nomeadamente coragem política das pessoas que nos governam para enfrentarem esse problema de frente, para o agarrarem e legislarem no sentido que vá ajudar a diminuir o estigma das pessoas que fazem trabalho sexual através do enquadramento legal da profissão - porque uma legislação baseada nos direitos humanos ajudaria a diminuir o estigma.
Suzana F. - Como muitas pessoas não têm acesso às informações, principalmente quando se trata de quem faz prostituição de rua, você acredita que talvez um trabalho feito em terreno, com entrega de panfletos com informações desses locais e o que eles oferecem em termos de atendimento, a nível médico, seria uma boa saída?
Alexandra Oliveira - Sim, mas eu primeiro contactaria as associações que estão no terreno a ver se já fazem esse trabalho ou não. Eu, neste momento, estou afastada do trabalho de rua, mas era habitual que os próprios projectos fizessem isso, que passassem nos locais, que anunciassem os seus serviços, que dessem essa informação. Agora, se calhar isso pode acontecer somente em meios urbanos ou em grandes cidades e deixar de fora muita gente, como por exemplo quem trabalha na estrada.
Suzana F. - O Espaço Intendente faz esse trabalho de divulgação em terreno?
Alexandra Oliveira - Sim, fazem sobretudo muito com o trabalho sexual de apartamento, mas existem outros projectos que o fazem, como a Obra Social das Irmãs Oblatas, que são freiras e que fazem um trabalho muito bom com trabalhadores do sexo, e que tinham muito esse trabalho de rua. E outras como a Associação Positivo, que também fazem esse trabalho de rua – e isto só referindo Lisboa.
O GAT trabalha muito bem nesta área e também fazem uma coisa que nem todas as associações fazem, que é o trabalho político, que é o que muitas vezes falta às associações, aos projetos e aos técnicos que não fazem esse papel. E eu acho isto muito incompreensível, não podemos ficar apenas no nosso papel técnico, sob a nossa “capinha” de psicóloga, assistente social, enfermeira, quando estamos a trabalhar com pessoas que são rejeitadas e excluídas, que enfrentam tantos problemas, que são tão oprimidas, eu acho que é quase impossível não fazer esse ativismo político e não ficar do lado das pessoas, e também tentar falar. Não falar por elas, os e as trabalhadoras do sexo não precisam que falem por eles, porque sabem muito bem o que querem dizer, mas temos que reconhecer que de facto lhes tem sido negada a voz, não se tem ouvido as pessoas que fazem trabalho sexual.
Eu, como professora universitária, falo sobre trabalho sexual e ouvem-me porque acham que eu tenho a legitimidade da investigação e todo esse prestígio que está associado ao professor universiário, e tu, enquanto trabalhadora do sexo, que tens um conjunto enorme de conhecimentos relacionados com a tua experiência, se calhar não és ouvida. Por isto, é importante também fazer esse ativismo político com os trabalhadores do sexo, não é em vez deles, mas com eles.
Suzana F. - Considera que seria importante que os psicólogos de primeira linha que estão inseridos em equipas multidisciplinares de instituições e organizações que atuam diretamente no terreno, centrados na redução de riscos, poderiam ter um papel fundamental no apoio aos Trabalhadores Sexuais com perturbações do foro psicológico?
Alexandra Oliveira - Sim. Acho que muitas vezes os projectos, que estão sobretudo vocacionados para redução de riscos e têm financiamentos específicos para essa área, ficam-se apenas por essa pequena parte relacionada com a redução de riscos, ligada com o VIH, por exemplo, e podiam fazer mais, pois estão numa posição privilegiada por terem grande proximidade e a confiança das pessoas. Mesmo com situações laborais que são frequentemente precárias e imenso trabalho de gestão, poderiam, pelo menos, referenciar as situações identificadas, se não pudessem fazer nada.
Pode-se sempre encaminhar e acompanhar a pessoa ao sítio certo, e fazer até um trabalho de sensibilização junto da pessoa para que ela procure ajuda.
Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte I
Por hoje ficamos por aqui. A parte final da entrevista com a Dra. Alexandra Oliveira será publicada no meu próximo texto. Fiquem atentxs!
Com amor,
Suzana F.
- Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte Final
- Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte I
Sobre o Autor
Suzana F.
Suzana F. é mente aberta, observadora e crítica por natureza. Apaixonada por literatura, ama ler e escrever sobre sexo.