17 junho, 2021 Trabalho Sexual e Saúde Mental: Entrevista com a Psicóloga Alexandra Oliveira - Parte I
Foi uma entrevista longa com esta Doutora em Psicologia com investigação na área do trabalho sexual.
Após analisar os resultados do inquérito "Impactos da covid-19 no sexo virtual", uma das coisas que causou-me realmente grande preocupação foi o número de pessoas que relataram ter desenvolvido doenças de fundo emocional durante esta pandemia e que não buscaram ajuda. Para entender a raiz do problema, estive à conversa com a psicóloga Alexandra Oliveira...
A Doutora em Psicologia Alexandra Oliveira fez toda a sua formação na Universidade do Porto, na qual entrou como assistente em 1997 e onde hoje dá aulas e trabalha também como investigadora. Dedica-se desde sempre ao seu tema principal de investigação, o comércio do sexo e o trabalho sexual, do mestrado ao doutoramento e a outras investigações que segue a fazer ao longo de seu percurso académico e profissional.
Foi uma entrevista longa com duração de mais de 1 hora de conversa. Até pensei em disponibilizar o áudio, mas como não levo lá muito jeito para edições e a transcrição de toda ela ficou com mais de 12 páginas, achei que era melhor dividir toda a entrevista por partes, já que há comentários feitos pela Dra. Alexandra que não merecem ser cortados e também a leitura não fica tão cansativa.
Portanto, fiquem atentos às minhas próximas publicações para lerem as partes posteriores.
Sem mais delongas, vou deixar a palavra à Dra. Alexandra...
Suzana F.: Quando decidiu começar a trabalhar com atendimento a profissionais do sexo e por que escolheu esse tema para estudos académicos?
Alexandra Oliveira: Eu costumo identificar duas coisas, uma é porque quando eu era adolescente li um livro que escolhi só pelo título, já que havia um palavrão na capa - "Puta de Prisão". Foi isso que me chamou a atenção e eu li. Esse livro foi escrito nos anos 80 por duas mulheres que foram presas como consequência do processo do PRP/BR e estavam presas na cadeia de Custóias, que é atualmente o Estabelecimento Prisional do Porto.
Na altura, a prostituição era crime, portanto existiam muitas mulheres presas pelo crime de prostituição. Essas duas presas, Fernanda Fráguas e Isabel do Carmo, resolveram escrever um livro contando a história de vida das 50 mulheres que estavam presas com elas. Na altura, quando li aquele livro, teve um impacto muito forte em mim, porque a ideia que eu tinha da prostituição era muito estereotipada e preconceituosa devido à educação conservadora que tive, e ali vi a realidade humana de 50 mulheres.
Uma outra razão é porque sou feminista e entendo que o controlo que existe sobre a prostituição e as mulheres que fazem prostituição é também o controlo da sexualidade feminina. As mulheres que são prostitutas não encaixam naquilo que é sexualmente prescrito para uma mulher, que é a castidade, a monogamia, o sexo só no casamento, a passividade sexual. Há uma série de normas sexuais que são consideradas adequadas a uma mulher e, depois, as mulheres que não cumprem esses preceitos são facilmente rotuladas de prostitutas ou de "putas".
Acho que esse estigma de puta que cai sobre as pessoas que fazem trabalho sexual é também um estigma que pode recair sobre qualquer mulher; a qualquer mulher que pise o risco, será facilmente apontado um dedo de má conduta sexual.
Apesar de todos os avanços e de todas as conquistas que as mulheres obtiveram ao longo das últimas dezenas de anos, esse julgamento moral continua. Nós sabemos muito bem o que essa liberdade sexual implica. Por ter esta consciência feminista, de quão injusta é essa perseguição às mulheres e às mulheres que fazem trabalho sexual, eu fiquei com vontade de me aproximar deste tema, destas pessoas, desta área, para compreender melhor e depois intervir.
Estou ligada à academia, mas tenho estado também ligada a muitos projectos de intervenção com pessoas que fazem trabalho sexual.
Suzana F.: Existe ou tem conhecimento de estudos, questionários ou atualizações feitas aos profissionais (psicólogos) públicos ou internos sobre a abordagem imparcial ou neutra aos pacientes que fazem trabalho sexual inseridas nas suas problemáticas?
Alexandra Oliveira: A investigação sobre o trabalho sexual aqui em Portugal não é muito desenvolvida, não há muita investigação. Sobre os profissionais que trabalham com pessoas que fazem trabalho sexual, que eu saiba, não há nada recente, mas acho que era muito importante haver. Eu, enquanto investigadora e interventora social, posso compreender as dificuldades, as discriminações que sentem quando contactam com profissionais na área da saúde, na área da justiça, na área da segurança social.
Por exemplo, quando fiz o meu doutoramento - eu fiz uma etnografia sobre prostituição de rua, o que implicou uma imersão muito prolongada no terreno, ou seja, o investigador vai até aos contextos que pretende estudar e fica lá com as pessoas - passei muito tempo com mulheres, sobretudo mulheres (cisgénero e transgénero), há menos homens em contexto de prostituição de rua. É natural que estando ali com as pessoas, às vezes 10 ou 12 horas, se ouvissem conversas de todo o tipo e eram muito frequentes os relatos sobre contactos e experiências negativas, precisamente nos centros de saúde, nos hospitais, quando têm que ir a um tribunal, quando têm que ir à Segurança Social pedir um apoio, a forma como são julgadas e etiquetadas. Ouvi relatos de mulheres brasileiras que fazem trabalho sexual que, mesmo escondendo o que fazem, sentem que são tratadas de forma diferente porque as pessoas, os profissionais de diversas áreas, presumem que ela é trabalhadora do sexo só porque é brasileira.
Embora não existam estudos aprofundados e com grandes amostras, estas indicações de terreno vão-nos dizendo isso. Vão-nos mostrando que existe um estigma sobre as pessoas que fazem trabalho sexual. O estigma é essa marca negativa que é colocada por cima das pessoas, que as descredibiliza, desvaloriza, deslegitima, que lhes tira a voz e é algo que as desumaniza. As pessoas que fazem trabalho sexual passam a ser vistas apenas como prostitutas.
Quem nunca viu de perto e nunca parou um bocadinho para pensar que são mulheres como as outras, pensa naquela mulher apenas como alguém que faz prosituição, esquecendo que ela é uma mulher que tem família, filhos, problemas, que tem emoções e ansiedades. E essa forma estereotipada e desumanizante de olhar para as pessoas que fazem trabalho sexual, resumindo-as a estes estereótipos, é o que está na base da violência que é exercida pelas pessoas, é como se os trabalhadores sexuais fossem vistos como coisas e isso legitima muita da violência.
Quando eu estava na rua com as prostitutas e via as agressões constantes e, nomeadamente os insultos de quem passa de carro, por exemplo, 3 ou 4 miúdos novinhos num carro, numa sexta-feira à noite, que passam, abrem o vidro e insultam... Eu ouvia aquilo e pensava:
Quem está a fazer isso esquece-se que aquelas mulheres são pessoas, que poderiam ser a mãe deles, porque as vêem como um Outro, distante. Acho que é essa falta de se pôr no lugar das pessoas que fazem trabalho sexual que é, precisamente, a causa desse estigma, desse estereótipo.
Suzana F.: Com relação à utilização de drogas e medicações controladas, você que fez trabalho de terreno e acompanhou isso de perto, o que pode dizer?
Alexandra Oliveira: Muitas vezes, associa-se a prostituição ao consumo de drogas ou à toxicodependência, mais especificamente ao consumo problemático de substâncias psicoativas ilegais. O que os estudos mostram, e que eu também vi nos meus próprios estudos, é que no trabalho sexual de rua há uma percentagem de pessoas que tem problemas com drogas.
Houve uma investigação que fizemos em 2001, que acho que já não reflete a situação atual, mas nós encontramos uma percentagem de mais de 36% de mulheres que faziam prostituição de rua que tinha problemas com substâncias psicoativas ilegais na altura.
Se formos ver em outros contextos de trabalho sexual, não existem tanto estes problemas de dependência e consumo problemático de substâncias psicoativas, pode existir consumo de drogas ou álcool, mas não problemático, ou a probabilidade disto acontecer é mais pequena.
Suzana F.: Considera que existe alguma preocupação clínica a nível dos profissionais no despiste e encaminhamento dos trabalhadores do sexo para consultas do foro mental, já que são vistos como uma comunidade “especial” e que deve ter privilégio e apoio nesse sentido?
Alexandra Oliveira: Na minha opinião, acho que não existe esse cuidado e essa atenção pelos problemas dos trabalhores do sexo, em geral, não só os de foro de saúde mental, mas em geral. Eu acho que tirando aqueles projectos, programas ou associações que fazem um trabalho específico com os trabalhadores do sexo, e que se não têm uma formação específica, pelo menos têm experiência de trabalho nessa área e que serão mais sensíveis a estas questões, os profissionais de saúde em geral, desconhecem que as pessoas fazem trabalho sexual e penso que não terão grande sensibilidade para estas questões, para ter uma atenção especial.
Em 2013, fiz uma investigação em Lisboa com o GAT, que na altura tinha um projeto que fazia intervenção em prostituição de apartamento, pois eles pediram-me para fazer uma caracterização da população alvo do projeto. Fizemos questionários a 121 trabalhadores do sexo e uma das questões que eu perguntei aos homens e às mulheres cis e trans que entrevistei foi se quando consultavam um profissional de saúde lhe contavam que faziam sexo comercial, isto se fosse importante para o problema.
A pergunta era: "Quando recorre a um profissional de saúde conta que faz sexo comercial?" 50% das pessoas disseram que nunca contavam e 12,8% quase nunca. Portanto, nós temos uma percentagem de apenas 36% de pessoas que disseram que quase sempre ou sempre contam.
Quando, por causa do estigma, as pessoas tendem a esconder que fazem trabalho sexual por medo de serem maltratadas ou discriminadas, isso impede que tenham a atenção adequada ao seu problema. Também podem prevenir que haja ali discriminação, preconceito, julgamento e que sejam até maltratadas, mas se não for o caso, se for um profissional que esteja preocupado com isso e não sabe, se a pessoas escondem, de facto não pode haver uma atenção adequada aos seus problemas. Eu penso que não há de facto uma atenção devida às pessoas que fazem trabalho sexual, nomedamente ao nível da saúde mental.
Suzana F.: Mesmo estas que contam que trabalham com sexo, não há por parte dos profissionais nenhuma preocupação para com o despiste dessas doenças?
Alexandra Oliveira: Eu não posso falar pelas experiências todas, nem pelos profissionais de saúde e não conheço investigação feita sobre isso, mas penso que podem existir duas situações: uma em que há um julgamento moral e uma relativização do problema e outra em que os profissionais de saúde tratam as pessoas da mesma forma que tratam qualquer outra e lhes dão a atenção devida.
Quando uma trabalhadora do sexo chega ao pé do/a médico de família e diz que faz trabalho sexual e que está com determinados problemas de ansiedade ou depressão, pode acontecer que o médico ache que isso é resultado do trabalho sexual, porque considera que o trabalho sexual é mau e tem efeitos negativos, ou seja, vai reforçar aquela ideia vitimizante sobre o mal que o trabalho sexual faz às pessoas e pode esquecer-se de outras condicionantes e de outros factores da vida da pessoa ou, então, de aspetos que estão associados, mas que não são intrínsecos, ao trabalho sexual e que podem ter uma influência negativa, como a insegurança.
Por exemplo, agora, a pandemia da covid-19, que se sabe que tem tido um impacto na saúde mental a todos os níveis na população em geral, não só dos trabalhadores do sexo, é uma situação que causou incertezas e inseguranças, as pessoas ficaram ansiosas, com medo, com irritabilidade e isso tem repercussões na saúde mental. Com as pessoas que fazem trabalho sexual, há aqui uma série de outros problemas acrescidos, este medo significa também que a pessoa deixou de trabalhar, deixou de ter rendimentos e fica preocupada porque não sabe como vai alimentar a sua família, ou então, se continuar a trabalhar tem a insegurança de estar permanentemente em contactos de risco, porque quando o trabalho sexual implica contacto físico não dá para manter um distanciamento de 2 metros, por mais cuidados que tenham, mesmo que trabalhem em posições que não implicam tanto o face a face, é impossível. E as pessoas que fazem este tipo de trabalho sexual, e são muitas, ficam nessa insegurança de "se, por um lado, eu faço, ponho-me em perigo, "se, por outro lado, eu não faço, fico sem dinheiro". Depois fica toda a questão de falta de dinheiro, incerteza e medo.
Há aqui outra questão: a covid-19 veio acentuar mais as desigualdades e veio expor as desigualdade dos sistemas de apoio social, mostrando que as pessoas marginalizadas ficaram ainda mais vulneráveis. Sabemos que há uma percentagem muito grande de migrantes no trabalho sexual em Portugal, muitas delas e deles em situação irregular, que podem não ter o mesmo acesso à saúde, até por falta de conhecimento, e esse acesso à saúde mais dificultado tem um impacto mais negativo.
Todos estes são fatores que se vão acumulando, cruzando e fazendo com que o impacto nas pessoas que fazem trabalho sexual seja maior do que em outras pessoas e que seja também um marcador de desigualdades.
Hoje ficamos por aqui, a entrevista continuará na próxima publicação...
Com amor,
Suzana F.
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Sobre o Autor
Suzana F.
Suzana F. é mente aberta, observadora e crítica por natureza. Apaixonada por literatura, ama ler e escrever sobre sexo.