11 avril, 2017 Trabalho sexual em tempos de guerra
O terrível dia-a-dia das trabalhadoras do sexo da Ucrânia no meio de um conflito armado.
O conflito armado que decorre na Ucrânia e a crise económica subsequente estão a complicar e muito as condições das trabalhadoras do sexo do país que é visto como um paraíso para turistas sexuais.
A guerra civil no Leste da Ucrânia, que arrancou em Março de 2014, entre nacionalistas e pró-russos, abalou consideravelmente o trabalho sexual num país onde esta actividade florescia, muito graças à reconhecida beleza das mulheres ucranianas.
Convém notar que na Ucrânia, a prostituição é crime - ora lê o artigo "A prostituição pelo mundo: entre a legalização e a proibição" para ficares a conhecer as diversas realidades que existem.
Mas na Ucrânia, apesar de ser ilegal, a actividade é bastante frequente, também por estarmos a falar de uma economia pobre, situação que a guerra civil só veio agravar.
A crise económica agravou os cortes nos apoios sociais, nomeadamente nos subsídios a mães solteiras, e as dificuldades de sobrevivência num país onde o salário médio ronda os 67 euros levaram a um aumento do número de trabalhadoras do sexo.
Apoiantes do lado pró-russo comparam, muitas vezes, a Ucrânia a uma prostituta que se esqueceu do "casamento" com a Rússia para dormir com a União Europeia e com os EUA por dinheiro.
Violência policial
Há mulheres que viajam para a região de Donbass, onde está o epicentro do conflito armado, para prestarem serviços sexuais a soldados de ambos os lados da frente de batalha. Aí encontram níveis de violência que não diferem assim tanto do quotidiano que enfrentam no resto da Ucrânia, nomeadamente às mãos da polícia.
A Legalife, organização ucraniana de trabalhadoras do sexo, recolheu múltiplos testemunhos de mulheres que foram vítimas de violência policial, como transcrevemos de seguida.
"Eles batem-te na sola do pé para não deixar vestígios."
"Batem com cabos eléctricos para não deixar marcas. Chama-se Motorola!"
"Algemam-nos a aquecedores! Algemam-nos com os braços atrás das costas e deixam-nos penduradas num poste. Faz os ombros doer tanto!"
As trabalhadoras do sexo apanhadas à espera de clientes na rua, nas cidades ucranianas, podem ser detidas e ser condenadas a uma multa até 9 euros. Já ser condenado por proxenetismo ou lenocínio dá pena de prisão.
Mas, na prática, as principais sancionadas são sempre as trabalhadoras do sexo, com muitos abusos pelo meio, conforme testemunhos divulgados pela Legalife.
Ninguém tenta deter os chulos, andam sempre atrás das raparigas. É o mesmo com as drogas. A polícia vai atrás dos toxicodependentes, não dos traficantes. Vão atrás de pessoas doentes, de pessoas comuns, onde é fácil porque não precisam de usar a força ou de esforçar-se muito.
Além do mais, a polícia raramente dá atenção às queixas das mulheres contra clientes ou chulos, por maus tratos. Como diz uma mulher ouvida pela Legalife, os agentes limitam-se a dizer "deixa de ser prostituta e isso não volta a acontecer".
As vítimas acabam assim, por ser culpadas pela violência que é cometida contra si próprias.
Há casos de mulheres que são forçadas a pagarem as respectivas multas nas "terrinhas" de onde são originais, o que acaba por levar toda a comunidade de origem a perceber a actividade a que se dedicam.
Uma situação que aumenta o estigma que já pesa sobre estas trabalhadoras do sexo e que, nalguns casos, acaba por repercutir-se nos filhos que acabam por ser vítimas de bullying na escolha, quando toda a comunidade fica a saber da profissão das mães.
Guerra piorou tudo
As organizações que apoiam mulheres que trabalham em bordéis ou na rua consideram que o cenário piorou muito para estas pessoas, nos últimos dois anos, com o agravar da situação económica, desde que o conflito armado começou.
Há mulheres que são obrigadas a virem das suas províncias, em cidades rurais ou pequenas, para grandes cidades como Kiev, a capital da Ucrânia, para trabalharem na indústria do sexo para sustentarem os seus filhos. Uma realidade que afecta muitas mães solteiras.
Em cidades próximas da linha da frente de batalha, onde ainda há condições para um dia-a-dia mais ou menos normal, há muitos soldados dispostos a pagar pela companhia de uma mulher.
Mas na zona de guerra propriamente dita, o sexo é uma moeda de troca para obter comida ou ajuda dos soldados para, por exemplo, encontrar uma casa. É uma forma de sobrevivência básica!
Nestas zonas, os relatos de violência sexual são praticamente inexistentes, mas isso não quer dizer que não aconteçam. Pelo contrário, as organizações que apoiam trabalhadoras do sexo acreditam que se multiplicaram, nos anos de guerra, com muitas mulheres a serem violadas por soldados.
Num cenário de guerra, onde há falta daquilo que é mais básico, como comida, acontecem as coisas mais terríveis, conforme explica a psicóloga Katya Shutalova que trabalha na linha da frente da guerra civil, para uma organização não governamental, em declarações ao site Open Democracy.
Vamos a lugares onde a vida era muito dura antes do conflito e piorou ainda mais depois dele. O alcoolismo está muito pior. As mulheres têm sexo com soldados para alimentar os seus filhos ou até os seus pais. Tudo à sua volta parece um pesadelo e os soldados parecem potenciais protectores. Estas raparigas podem ter 13 ou 15 anos. Dizem-te o que acontece em confidência, mas têm medo que qualquer tipo de instituição - escolas, hospitais, serviços sociais - descubra porque podiam sofrer as consequências. As vítimas de violência sexual são estigmatizadas. É muito difícil falar desse tipo de violência. Se se falar, as pessoas vêem isso como um ataque ao patriotismo."
Proliferação de doenças
Outro problema grave é a falta de preservativos ou o seu preço demasiado elevado, especialmente nas zonas de guerra, bem como a relutância dos soldados em usá-los.
Além de haver muitas mulheres a ficarem grávidas, há a proliferação de infeções sexualmente transmissíveis e já se teme que, mais tarde ou mais cedo, venha aí um pico de casos de SIDA.
No meio disto tudo, a guerra parece ser uma boa justificação para todo o tipo de violência, como se pode depreender pela sentença decretada por um juíz, em 2016, a um soldado que violou uma rapariga de 16 anos. Ele foi condenado a pena suspensa pelo facto de ter servido na linha da frente, em Donbass.
Esse mesmo regime de impunidade impera numa cultura onde a violência doméstica é recorrente e nem sempre punida com a severidade devida. As trabalhadoras do sexo surgem assim, num patamar ainda mais vulnerável numa sociedade onde os direitos das mulheres não estão ainda, devidamente salvaguardados - tanto mais quando decorre uma guerra.
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)