06 Julio, 2015 Violada, baleada, apunhalada: uma história de sobrevivência
Após 25 anos de trabalho sexual forçado, uma mulher conta como recuperou a sua vida.
Ela foi vítima de brutalidades incríveis, a começar pelo facto de ter que se prostituir para pôr comida na mesa dos filhos. Mas, após 25 anos de trabalho sexual forçado e depois de ter sido violada, traficada, baleada por 5 vezes e apunhalada por 13 vezes, ela recuperou a vida e conta-nos a sua história.
A norte-americana Brenda Myers-Powell começou a trabalhar no mundo do sexo quando era apenas uma menina de 14 anos, na década de 1970. Mas aos 4 já era vítima de abusos sexuais e acabou a trabalhar nas ruas, sendo explorada por um grupo de proxenetas.
Depois de deixar o mundo do trabalho sexual forçado, passou a dedicar a vida a garantir que outras meninas não passam pelo mesmo tormento que ela passou.
Ora leia o seu testemunho comovente que releva a importância de legalizar o trabalho sexual, como forma de proteger os direitos dxs trabalhadorxs do sexo...
"Desde o início, a vida deu-me limões, mas sempre tentei fazer a melhor limonada possível.
Cresci em Chicago na década de 1960. A minha mãe morreu quando eu tinha seis meses de idade. Ela tinha apenas 16 anos e nunca soube de que morreu. A minha avó, que bebia mais do que a conta, não me conseguiu dizer.
Foi a minha avó quem ficou encarregue de mim. Não era má pessoa; de facto, tinha um aspecto maravilhoso. Lia-me histórias, assava-me coisas e cozinhava as melhores batatas. Mas tinha um problema com o álcool. Trazia os amigos do bar para beber em casa e quando ela colapsava da bebedeira, esses homens faziam-me coisas.
Isso começou quanto tinha 4 ou 5 anos e tornou-se algo habitual. Estou certa de que a minha avó não o sabia.
Ela trabalhava como empregada doméstica nos subúrbios. Levava duas horas a ir e duas a voltar. Por isso, eu carregava uma chave em torno do pescoço e ia e vinha sozinha do jardim de infância. Os abusadores sabiam e aproveitavam-se disso.
Era uma menina muito extrovertida e ria-me muito. Ao mesmo tempo, tinha medo, tinha sempre medo. Não sabia se o que estava a passar era por minha culpa ou não. Talvez tivesse algo mau.
Apesar de ser uma menina inteligente, desliguei-me da escola.
Quando chegou à década de 1970, converti-me no tipo de miúda que não sabia como dizer "não": se os rapazes da comunidade me diziam que gostavam de mim ou me tratavam bem, basicamente podiam fazer o que quisessem comigo.
Quando completei 14 anos já tinha duas filhas de rapazes do bairro.
A minha avó começou a dizer que eu tinha que ganhar dinheiro para pagar por esses filhos, pois não havia comida... Não tínhamos nada.
Assim, numa noite - uma Sexta-Feira Santa -, parei em frente a um hotel. Tinha colocado um vestido de duas peças que me tinha custado 3,99 dólares, sapatos de plástico baratos e tinha pintado os lábios de laranja, pois pensava que isso fazia com que parecesse mais velha.
Tinha 14 anos e chorei durante todo o tempo. Mas fi-lo. Não gostei, mas os cinco homens que estiveram comigo nessa noite mostraram-me o que fazer. Sabiam que era jovem e era como se isso os excitasse.
Ganhei 400 dólares. Fui para casa no comboio e entreguei quase todo o dinheiro à minha avó que não me perguntou onde o tinha arranjado.
No fim-de-semana seguinte voltei ao mesmo lugar e parecia que a minha avó estava contente quando voltei com dinheiro.
Mas, na terceira vez que fui, um par de homens bateram-me com uma pistola e colocaram-me na mala do seu carro. Já se tinham aproximado de mim antes, a dizer-me que eu "não estava representada" naquela rua.
Primeiro, levaram-me a um campo no meio de nenhures e violaram-me. Depois, levaram-me para o quarto de um hotel e fecharam-me num armário. Isto são o tipo de coisas que os proxenetas fazem para enfraquecer as meninas.
Deixaram-me ali por muito tempo. Eu suplicava-lhes que me deixassem sair porque tinha fome, mas disseram-me que só o fariam se aceitasse trabalhar para eles.
Obrigaram-me a fazê-lo durante cerca de seis meses. Não me deixavam ir a casa. Tratei de fugir, mas apanhavam-me e castigavam-me de forma dura.
Depois, fui traficada por outros homens. O abuso físico era horrível, mas o abuso real era o mental: as coisas que te diziam ficavam dentro de ti e nunca se podia sair do vazio.
Os proxenetas são muito bons a torturar e a manipular. Alguns fazem coisas como despertar-te a meio da noite, apontando-te uma pistola à cabeça. Outros fingem que te valorizam e uma pessoa sente-se como "Uma Cinderela e chegou o meu Príncipe Encantado".
Parecem tão doces e encantadores e dizem-te: "Só tens que fazer isto por mim e depois vêm os bons tempos." e pensa-se: "A minha vida já foi tão dura, que importa um pouco mais?". Mas nunca se chega aos bons tempos.
As pessoas descrevem a prostituição como algo glamoroso, elegante - como na história do filme "Pretty Woman" -, mas não é nada parecido.
Uma prostituta pode deitar-se com cinco estranhos por dia. Num ano, são mais de 1800 homens com os quais mantém relações sexuais ou sexo oral.
Não se tratam de relações, ninguém me trazia flores, garanto-te. Estavam sim, a usar o meu corpo como um banheiro. E os clientes são violentos.
Dispararam contra mim cinco vezes e apunhalaram-me 13 vezes.
Não sei porque é que esses homens me atacaram. Só sei que a sociedade faz com que se sintam confortáveis a fazê-lo. Trouxeram consigo a sua ira ou a sua doença mental ou o que seja e decidiram vingar-se numa prostituta, sabendo que eu não podia ir à polícia e que se o fizesse, não me levariam a sério.
De facto, tive sorte. Conheci mulheres bonitas que foram assassinadas nas ruas.
Fui prostituta durante 14 ou 15 anos antes de experimentar as drogas. Mas, depois de um certo tempo, depois de te deitares com todos os que podes, depois de te terem estrangulado, de te terem posto uma faca na garganta ou uma almofada sobre a cabeça, precisas de algo que te dê valentia.
Fui prostituta durante 25 anos e em todo esse tempo nunca soube como sair disso.
Mas no 1.º de Abril de 1997, quando tinha quase 40 anos de idade, um cliente atirou-me do seu carro. O meu vestido ficou agarrado à porta e ele arrastou-me por seis blocos. Arrancou-me a pele da cara e de uma parte lateral do corpo.
Fui ao hospital e levaram-me logo para as Urgências. Por causa do estado em que estava, chamaram um agente da polícia que me viu e disse: "Eu conheço-a. Não passa de uma puta. Certamente, bateu nalgum gajo e roubou-lhe dinheiro e teve o que merecia".
Eu ouvia como a enfermeira se ria com ele. Deixaram-me na sala de espera, pois eu não valia nada, como se não merecesse os Serviços de Emergência depois de tudo.
E foi nesse momento, enquanto esperava que chegassem os do próximo turno e que alguém me atendesse, que comecei a reflectir sobre a minha vida.
Até então, tinha sempre tido alguma ideia do que fazer, para onde ir, como levantar-me de novo. De repente, era como se me tivessem acabado as ideias.
Recordo que olhei para cima e disse a Deus: "Não importo para esta gente. Podes ajudar-me, por favor?". Deus ocupou-se de mim imediatamente. Uma doutora veio, atendeu-me e disse-me para ir à assistência social do hospital.
O que sabia da assistência social era que eram tudo, menos sociais. Mas deram-me um bilhete de autocarro para que fosse a um lugar chamado Casa Génesis que liderava uma inglesa maravilhosa chamada Edwina Gateley, quem se converteu na minha heroína e mentora. Ajudou-me a mudar a minha vida.
Era um Centro de Acolhimento e lá tinha tudo o que precisava: não tinha que preocupar-me em pagar a roupa ou a comida, nem em arranjar trabalho. Disseram-me para tirar tempo e para ficar por quanto fosse necessário.
Fiquei quase dois anos. A minha cara curou-se, a minha alma curou-se: recuperei a Brenda.
Graças a Edwina Gateley, aprendi o valor dessa profunda ligação que pode acontecer entre mulheres, esse círculo de confiança, amor e apoio que um grupo de mulheres pode dar umas às outras.
No início, quando deixei a Casa Génesis só queria um emprego, pagar impostos e ser como toda a gente. Mas comecei a ser voluntária com trabalhadoras sexuais e a ajudar numa investigação de uma universidade.
Depois de um tempo, dei-me conta de que ninguém estava a ajudar essas jovens. Ninguém ia e lhes dizia: "Eu era assim, eu já estive aí. Agora sou assim e tu também podes mudar, tu também podes aliviar-te".
Assim, em 2008, junto com Stephanie Daniels-Wilson, criamos a Fundação Dreamcatcher [Caçador de Sonhos].
Um caçador de sonhos é um objecto dos nativos americanos que se prende ao berço das crianças. Supõe-se que não deixe passar os pesadelos. É isso que nós queremos fazer: afuguentar esses maus sonhos, essas coisas más que aconteceram a mulheres jovens e adultas.
Até ao momento, temos 13 meninas que já terminaram a secundária e que estão na Universidade. Conhecêmo-las quando tinham 11, 12, 13 anos de idade e estavam completamente destruídas. Agora, estão a tentar alcançar as estrelas.
Além disso, dou conferências e contribuo com investigações académicas sobre a prostituição.
As pessoas dizem coisas diferentes sobre a prostituição.
Deixa-me perguntar-te uma coisa: a quantas pessoas animarias para que deixassem o seu emprego e se tornassem prostitutas? Dirias às tuas amigas próximas ou familiares: "já pensaste em ser puta? Podia ser muito bom para ti!"?
Alguns pensam que o que ajudaria as trabalhadoras sexuais é que o seu trabalho não fosse ilegal.
Eu creio que é verdade que cada mulher tem a sua própria história.
Pode estar bem para uma, que esteja a pagar a sua carreira de Direito, mas não para outra que foi abusada quando era menina, que nunca teve outra opção, que estava apenas a tentar arranjar dinheiro para comer.
Mas, pode sempre encontrar-se um louco que chegue com outros três ou quatro tipos, que te metam à força num quarto e te violem em grupo, que te roubem o telemóvel e todo o teu dinheiro. De repente, não tens como ganhar a vida e estás golpeada. Essa é a realidade da prostituição.
Depois de ter sido prostituta, sinceramente não estava preparada para ter uma relação. Mas, após três anos de abstinência, conheci um homem extraordinário. Nunca me julgou por nenhuma das coisas que passaram antes de nos conhecermos. Apoia-me em tudo o que faço e, no ano passado, celebramos o nosso 10.º aniversário de casamento.
As minhas filhas, que foram criadas por uma tia minha nos subúrbios, agora são umas jovens incríveis. Uma é doutora e a outra trabalha com a justiça.
Pelo que, estou aqui para dizer-te: há vida depois de muito dano; há vida depois de muito trauma.
Há vida depois de as pessoas te terem dito que não és nada, que não vales nada e que nunca conseguirás nada.
Há vida. E não estou a falar de um pouco de vida. Há muita vida."
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)