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26 June, 2017 Prostituição Antes do 25 de Abril: As Madames de luxo do tempo de Salazar

"Mulheres da vida" célebres e que fizeram fortuna no Portugal do passado.

Continuando a nossa viagem pela Prostituição Antes do 25 de Abril, focamo-nos agora nas "madames" de luxo que conviviam com as mais altas figuras do Portugal do passado.

Prostituição Antes do 25 de Abril: As Madames de luxo do tempo de Salazar

Leia ainda os restantes tópicos da grande reportagem sobre a Prostituição Antes do 25 de Abril:

+ As Toleradas
+ Relatos de mulheres que se prostituíam
+ O escândalo Ballet Rose
+ Homossexualidade, repressão e tortura

As "Madames"

Desde a famosa Severa (1820-1846) que morreu de tuberculose com apenas 26 anos de idade, num prostíbulo na Rua do Capelão, em Lisboa, onde se tornou um verdadeiro mito do fado, várias "mulheres da vida" se tornaram célebres ao longo dos anos.

Neste artigo, vamos falar dos nomes de algumas dessas mulheres mais emblemáticas, procurando traçar o retrato da "Lisboa do pecado" de outrora.

A Preta Fernanda

Nascida em Maio de 1859, em Cabo Verde, era conhecida em Lisboa como "Preta Fernanda" e morreu nos anos de 1930.

Chegou à capital portuguesa com apenas 19 anos, depois de ser seduzida por um capitão português e após um casamento com um alemão, pelo meio. Em Lisboa tornou-se num ícone da boémia da época, sendo vista como uma mulher independente e influente junto das elites.

PretaFernanda

Associada a várias casas de prostituição e dona de uma beleza apreciada, serviu de modelo à estátua feminina do Marquês Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, junto ao Mercado da Ribeira, no Cais do Sodré, em Lisboa. A figura, com uma corrente nos tornozelos e um bebé nos braços, é o símbolo da libertação dos escravos.

Diz-se que Fernanda recebeu do erário público para posar para a estátua e também terá beneficiado da ajuda dos inúmeros "amigos" influentes que tinha para abrir um "salão" luxuriante no Bairro Alto, onde se reuniam os intelectuais da época, desde políticos a escritores. Eça de Queiroz estaria entre os ilustres com quem se relacionava.

Ainda foi toureira e em 1912, com 53 anos, publicou um livro de memórias, onde detalha a lista dos seus amantes e pormenores sobre o desempenho sexual de cada um deles.

O retrato da "Preta Fernanda" é muito bem "pintado" pelo jornalista António Valdemar, num dos seus artigos na história coluna "Avenida da Liberdade", que manteve no Diário de Notícias, e onde também fala de outras "madames" da época.

"Uma das mais famosas casas de putas de Lisboa, no fim do século XIX princípios do século XX, era a da preta Fernanda. Para além do registo, com toda a evidência, nos anais da prostituição ficou associada à literatura, à arte e à alta e baixa política, envolvendo figuras da Monarquia e da I República. Mais tarde o lugar da preta Fernanda na vida marginal da cidade viria a ser, por exemplo, ocupado pela madame Calado (que deixou os bens num testamento impressionante à Misericórdia do Fundão); pela madame Vilas Boas (a mais selecta e mais cara, no último andar do 100, da rua da Misericórdia) ou, então, pela Luísa Miranda, na rua Eugénio dos Santos, quase defronte ao Coliseu."

Madame Calado, a "rainha das putas"

Uma das mais ilustres "madames", entre as citadas no artigo de António Valdemar, é Maria da Piedade Calado (1894-1964), ou simplesmente Madame Calado, que foi dona da mais exclusiva casa de prostituição de Lisboa, nos anos de 1950 e de 1960.

Mulher do norte, nascida na zona da Covilhã, fez fortuna a atender ministros e outra clientela selecta.

Dona da "Pensão" Calado na Calçada do Carmo, em frente à estação do Rossio, a revista Sábado refere, numa reportagem sobre ela, que, em 1943, emprestou 550 contos (que equivalem a 272 mil euros nos dias de hoje) a um comerciante e que, em 1948, vendeu uma quinta de que era proprietária por 1.800 contos (mais de 750 mil euros actualmente).

Os números ilustram bem o seu poderio financeiro. Era dona de vários imóveis e deslocava-se de carro com um motorista, o que era extraordinário para a época. Diz-se também, que andava nua pela casa e que tinha pedidos extravagantes para os seus empregados, como massagens a meio da noite.

Alta e loura, chamavam-lhe "a rainha das putas", mas também era conhecida por fazer caridade e por dar boas esmolas na missa.

Como boa católica, e antes de morrer, aos 69 anos, com um enfarte de miocárdio, Madame Calado arrependeu-se dos seus pecados e deixou a fortuna à caridade, num testamento que foi escrito por José Hermano Saraiva, antigo ministro da Educação de Salazar e apresentador de programas de História na RTP, e de que a Sábado transcreveu um extracto.

"Sou católica e na hora da minha morte o meu pensamento eleva-se para Deus, a quem peço perdão por todos os meus pecados. Àqueles que ofendi e também a todos aqueles a quem fiz mal ou deixei de fazer bem, peço que perdoem todas as minhas faltas (...) Desejo que todos os meus bens possam contribuir para minorar a pobreza e a dureza da vida das crianças pobres da minha região."

Assim, cedeu um dos imóveis que detinha, a Casa do Bico, à Misericórdia do Fundão para criar a Casa-mãe de Nossa Senhora da Piedade, um lar para 20 raparigas, dos 10 aos 20 anos, e mais 1.200 contos (416 mil euros nos dias de hoje).

Ainda ordenou a entrega de uma esmola de 100 escudos (34 euros) e de um cobertor quente aos pobres da sua terra, a Boidobra, na Covilhã, e pagou 20 contos (6941 euros) ao padre para que ele rezasse pela sua alma e lançasse flores brancas sobre a sua campa no Dia de Todos os Santos.

Também doou 250 contos (86.750 euros) à Igreja de Boidobra e mais 250 contos ao Ministério da Educação para financiar uma cantina escolar na aldeia.

Após a sua morte, descobriu-se um cofre enterrado, numa das suas quintas, repleto de jóias.

A Lisboa do pecado

Mas havia outras figuras emblemáticas, nesta Lisboa do pecado, como a afamada Madame Blanche, uma francesa que fica eternizada no poema "Pastelaria" do escritor Mário Cesariny.

"Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola"

O bordel da Madame Blanche é também citado no livro "Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia" (2011), pelo escritor José Rentes de Carvalho que vive na Holanda há 60 anos e que, no conto "Almoço no Ritz", fala sobre esses tempos de luxúria do regime de Salazar, descrevendo "um desmedido salão cheio de sofás e banquetas, onde raparigas de ar recatado, sozinhas ou conversando em pequenos grupos, aguardavam o bel-prazer dos clientes".

Conhecedor dos prazeres de Madame Blanche e também de Madame Calado e assumido frequentador de bordéis foi o cartoonista e pintor José Vilhena (1927-2015) que é o autor da ilustração que surge em destaque neste artigo.

Aquele que foi o primeiro grande caricaturista nacional ficou conhecido pelo seu traço "picante", visto por alguns como pornográfico. Vilhena foi preso pela PIDE e teve muitos dos seus livros censurados e apreendidos e ilustrou, como ninguém, o universo da prostituição na altura do Estado Novo, nomeadamente na obra "Branca de Neve e os 700 anões" (1962).

Vilhena sempre falou com saudosismo das "casas de meninas" desse tempo, como se pode ler num dos muitos artigos que escreveu.

"Eram lugares sacralizados, com tradições e cerimonial mantidos a preceito: as boas vindas, denunciando a categoria do cliente, o bater das palmas com que a «patroa» ordenava «Meninas à sala», a expectativa gerada nos clientes, finalmente o desfile. Lá vinham elas, em fila indiana, exibindo as suas coxas e as suas mamas, fazendo as poses que mais lhe favoreciam os encantos, recebendo elogios da «patroa» que ia sublinhando a firmeza da mama, o aveludado da pele, a perfeição da coxa, o roliço da anca."

Estas casas de "luxo" da altura eram mais raras, mas ofereciam um serviço de qualidade que começava nos tapetes e nos cortinados, que não ficavam atrás dos que existiam nas casas mais abastadas da sociedade de então, e terminava nas mulheres que lá trabalhavam, sujeitas a uma rigorosa disciplina.

As "meninas" eram "preparadas, educadas e tratadas pela patroa para estarem ao nível dos clientes e do preço cobrado", e, além de "bem remuneradas", eram também "examinadas em consultórios particulares", como explica Ana Maria Alves na sua tese de mestrado em História Contemporânea "Percursos de Vida: A Prostituição no Porto na Década de 60/70".

Das "patroas" às "inculcadeiras" e aos amásios...

Neste universo, que embora "subterrâneo", era conhecido de todos, as "tias" ou "patroas" eram as responsáveis pelos chamados "colégios de apatroadas", geralmente, frequentados por clientela de dinheiro.

As "alcoviteiras" angariavam raparigas para estas casas de "bem". E as "inculcadeiras" ou "chegadeiras" procuravam especificamente famílias em situação difícil, seja para recrutar as mulheres, seja as filhas jovens que tinham alto "valor" na actividade por serem muito procuradas pelos clientes mais distintos.

Estas crianças atendiam em casas ou eram enviadas para as ruas mais frequentadas, sob pretexto de irem pedir esmola, vender fósforos ou cautelas, quando na verdade iam prostituir-se, concretizando a actividade em vãos de escada ou ruas escusas.

Finalmente, havia o chulo ou "souteneur" que tratava de defender as prostitutas de clientes abusadores ou até da polícia. Estes protectores eram também conhecidos como amásios, amantes de letra ou "gajos bons" e, em muitos casos, eram os companheiros/namorados das mulheres e sustentados por elas.

Gina Maria

Gina Maria

Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.

"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]

+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas) 

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