10 julho, 2017 Prostituição Antes do 25 de Abril: Homossexualidade, repressão e tortura
Considerado "vício da natureza", ser homossexual era o grande pecado da época do Estado Novo.
No último capítulo da grande reportagem sobre a Prostituição Antes do 25 de Abril, vamos abordar a homossexualidade e a forma como era vista como uma doença, dando azo a prisão e a torturas inimagináveis.
Leia ainda os restantes tópicos da grande reportagem sobre a Prostituição Antes do 25 de Abril:
+ As Toleradas
+ Relatos de mulheres que se prostituíam
+ As Madames de luxo do tempo de Salazar
+ O escândalo Ballet Rose
"Tudo o que não se vê, não é"
O lema do Estado Novo de Salazar assentava na tríade "Deus, Pátria e Família" e logo, na ideia de que o sexo tinha por mero fim a procriação entre homens e mulheres. Assim, a homossexualidade era "um vício da natureza", como a prostituição feminina, mas considerada ainda mais grave do que esta e punida como um crime.
Todavia, tal como se toleravam as "mulheres da má vida", também a homossexualidade existia à vista de todos em nichos muito pequenos e elitistas. Havia algumas figuras próximas de Salazar aceites como homossexuais (desde que não dessem demasiado nas vistas) - "tudo o que não se vê, não é", dizia Salazar.
Mas, de resto, todos os conteúdos de carácter homossexual eram censurados, da literatura aos espectáculos, passando por todo o tipo de livros, até de sexologia e psicanálise. E as notícias dos jornais estavam proibidas de incluir sequer a palavra homossexual.
Polícias que davam o "corpo ao manifesto"
Muitos dos casos de homossexuais "apanhados" resultavam de denúncias de vizinhos ou de inimigos, para se vingarem, ou até das próprias mães que viam a situação como uma doença.
A Polícia mantinha também vigilância apertada aos locais de encontro ou convívio de homossexuais, geralmente urinóis públicos, saunas, estações de comboio, pensões que permitiam a prática de prostituição e os chamados "quartos mobilados", legalizados para prostituição feminina, ou ainda, em praias como a da Costa da Caparica, antes da construção da ponte sobre o Tejo.
Havia um esquema de "passa-palavra" entre os homossexuais, para locais de engate e de convívio, dentro de grupos fechados, com um círculo de amigos bem definido, para evitar a polícia.
Mas a Polícia de Costumes fazia rusgas e vigilância à civil nos locais mais conhecidos de engates homossexuais e, nalguns casos, até criava armadilhas para prender pessoas em flagrante.
Num processo de polícia de 1939, um agente conta como ludribiou e prendeu um homossexual, dando o próprio "corpo ao manifesto", conforme cita Ana Clotilde Graça Correia na sua tese de mestrado em História Moderna e Contemporânea, no Instituto Universitário de Lisboa, intitulada "Corpo de Delito: A Repressão Policial à Homossexualidade na Primeira Década do Estado Novo" (2016).
"Por no local da captura, onde me encontrava de serviço, trajando civilmente, ter sido abordado pelo arguido, convidando-me para ir dar um passeio e por desconfiar dele continuei a conversar, até que o mesmo me desabotoou o sobretudo ao mesmo tempo que desabotoava a braguilha das calças, tirando-me o membro viril para fora. Eu, como o quisesse trazer para a Esquadra, disse-lhe então que me acompanhasse, que iríamos para uma garage, onde podíamos brincar à vontade, isto próximo de um colega que se encontrava fardado e de serviço."
Os alvos da polícia eram, basicamente, a classe trabalhadora. Não há registo de processos contra figuras de extractos mais elevados da sociedade.
Só os homossexuais das classes baixas eram "humilhados nas esquadras e espancados em público, passeados pelas ruas, postos a lavar o chão", como conta à jornalista São José Almedia, no livro "Homossexuais no Estado Novo (2010)", o investigador António Fernando Cascais.
Muitas vezes, a prisão significava também a perda do emprego, além da condenação social. No caso dos funcionários públicos, havia processos disciplinares que terminavam com o despedimento.
Um único caso com mulheres
A Polícia de Costumes actuava, sobretudo, no âmbito da homossexualidade masculina. Nos arquivos da Polícia de Investigação Criminal de Lisboa, alusivos ao período entre 1933 e 1943, a historiadora Ana Clotilde Graça Correia encontrou apenas um caso de prisão de duas mulheres, nos processos envolvendo delitos por relações entre pessoas do mesmo sexo.
Estas duas mulheres tinham 18 e 19 anos e eram "toleradas", ou seja, prostitutas registadas, e foram acusadas, em 1937, de "no interior do Cinêma ´SALÃO LISBOA terem praticado actos imorais", conforme relata a investigadora na sua tese.
Ana Clotilde Graça Correia inclui no seu trabalho o relato do agente da Polícia de Costumes que fez a detenção no cinema que ficava localizado na Praça do Martim Moniz, em Lisboa, e as razões para a mesma.
"No local da captura estarem com as saias levantadas e ao mesmo tempo que se abraçavam e se beijavam, metiam a língua na bôca uma à outra, bem como os dedos na vagina, também uma à outra, isto sem respeito pelo lugar em que se achavam, pois estava frequentado por bastantes senhoras e crianças que, devido ao escandalo e bastante indignadas chamaram a atenção da primeira testemunha, fiscal do referido cinêma. Quando da minha intervenção continuaram abraçadas e a intimadas a acompanharem-me à esquadra responderam-me em alta voz, o seguinte: ‘Nós só queremos os homens para nos lamberem a côna.‘"
As duas mulheres cumpriram pena de prisão por transgressão, insultos e desobediências, porque já tinham cadastro policial, mas só foram multadas em 500 e 400 escudos por "ultraje ao pudor", não havendo qualquer referência ao crime de "vícios contra a natureza".
A morte de Carlos Burnay
Em Março de 1952, corriam burburinhos de orgias homossexuais, com muita droga à mistura, em palacetes de Cascais, envolvendo altas figuras da sociedade e do regime.
E foi depois de uma destas animadas festas que aconteceu a morte de Carlos Burnay, um jovem homossexual de 25 anos, estudante de Direito e filho de uma família rica e aristocrática da época.
Foi encontrado morto, em casa, em Cascais, na sua cama, com as calças de pijama e o tronco nu, com uma bala na testa e coberto até ao pescoço com os lençóis. Na noite anterior, tinha organizado uma festa gay, como em tantas outras ocasiões, numa das casas da mãe que era uma senhora influente da época.
O caso foi arquivado, supostamente por ordem do próprio Salazar, para evitar o escândalo, uma vez que havia várias figuras da alta sociedade envolvidas nas festas gays de Burnay. Assim, nunca se apuraram os culpados e a versão oficial aponta para suícidio.
A polícia começou por identificar e deter muitos dos presentes na festa, mas o regime não permitiu a divulgação dos seus nomes, já que havia entre eles elementos de famílias muito bem vistas e endinheiradas, numa altura em que a homossexualidade era crime.
O caso foi noticiado muito ao de leve nos jornais da época, com uma breve nota genérica da polícia.
"Cerca de 40 indivíduos, incluindo sete mulheres, comprometeram-se em actos indecorosos, quer em abuso de libações e de costumes, quer em estranhas devastações na vivenda onde se encontravam."
Filho de um visconde e menino rico, Burnay tinha o hábito de organizar o que chamava os "Serões da Amizade", como na noite em que morreu, onde terá havido cocaína e absinto ao gosto do freguês.
Diz-se também que Burnay pagava avenças mensais a homens pelo prazer da sua intimidade e a teoria mais provável é de que terá sido assassinado pela criada da casa e pelo marido desta que seria um dos "amantes" financiados pelo jovem aristocrata.
Sabendo que ele estaria decidido a acabar tudo com o marido, a criada terá tido a ideia de o matarem por vingança.
O caso não teve culpados, mas levou a polícia a atirar-se ao submundo da homossexualidade e da prostituição masculina de Lisboa, sucedendo-se dezenas de rusgas e de detenções. Muitos homossexuais ficaram tão assustados que fugiram para o estrangeiro, enquanto outros casaram à pressa para despistar as autoridades.
A trágica história de Valentim de Barros
Outro caso paradigmático que ilustra a forma como os homossexuais eram tratados é o do bailarino Valentim de Barros (1916-1986) que viveu preso num hospital psiquiátrico, desde 1949 até morrer, por ter uma "tendência travesti".
Aquele foi o "problema mental" com que foi diagnosticado num tempo em que a homossexualidade era vista como uma doença e tratada com choques eléctricos.
Valentim de Barros morreu a 3 de Fevereiro de 1986 com 69 anos, depois de quase 40 anos fechado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, onde recebeu choques eléctricos e foi operado ao cérebro.
Este é um dos exemplos mais trágicos do que sucedia aos homossexuais que eram vistos como "doentes mentais", vítimas de uma "perversão" "tão digna de ser tratada como qualquer outra", como referia Egas Moniz, o Prémio Nobel da Medicina de 1949, no segundo volume da obra "A Vida Sexual", intitulado "Pathologia" (1902).
As Mitras
Neste capítulo, havia uma igualdade entre homens e mulheres, sendo que a Lei previa punição idêntica para as lésbicas que eram classificadas como "invertidas".
Na altura, os médicos faziam a distinção entre o que chamavam as lésbicas "sáficas", que eram apenas passivas, e as "tribades", supostamente apenas activas. Egas Moniz explica, no já referido "A Vida Sexual", como se podiam identificar os sinais físicos dos "hábitos homossexuais" das sáficas.
"O safismo consiste na masturbação bucal com sucção do clítoris. É pois fácil deduzir quais as alterações que aparecem. A deformação vulvar é especialmente caracterizada pelo alongamento do clítoris, pelo aspecto rugoso e pela flacidez do prepúcio que, em parte, aparece destacado da glande."
Deste modo, como "vício da natureza", a Lei previa que as pessoas apanhadas em comportamentos homossexuais incorriam em conduta imoral ou vadiagem e muitas acabaram em estabelecimentos de reeducação como o Albergue de Mendicidade da Mitra, no Poço do Bispo, em Lisboa.
Esta instituição recebeu, desde 1933, quando foi criada, até 1951, mais de 12 mil pessoas, muitas das quais classificadas como "doentes mentais", segundo dados consultados pela antropóloga Susana Pereira Bastos. Da "Mitra", como ficou conhecida, saíram pouco mais de 10 mil pessoas, muitas das quais mortas, refere a investigadora no livro "O Estado Novo e os seus vadios" (1997).
Susana Pereira Bastos falou com vários ex-reclusos deste albergue e conclui no livro como a violência era uma prática instituída.
"As memórias das mitras eram de uma grande violência, porque eram internados administrativamente sem passar pelo tribunal. Sofreram várias formas de violência corporal, sobretudo no anexo do Albergue da Mitra, a Colónia Agrícola do Pisão (Quinta do Pisão), para onde eram enviados os homossexuais, quer administrativamente, quer depois de condenados em Tribunal. Ali havia as chamadas «visitas ao pinhal», onde espancavam os internados."
Pretexto para perseguições políticas
A homossexualidade era também usada como um pretexto para a PIDE intervir contra certas figuras incómodas da oposição, como foi o caso de Júlio Fogaça (1907-1980), um alto dirigente do Partido Comunista Português (PCP) que foi preso com o seu companheiro, em 1960, numa pensão na Nazaré.
Não foi a primeira vez que Fogaça foi preso - já havia mesmo sido deportado por duas vezes, fruto da sua actividade política no PCP -, mas foi a primeira vez que a acusação de homossexualidade foi utilizada para o afastar da liberdade.
Em 1962, foi julgado por homosexualidade num Tribunal de Execução de Penas, onde foi classificado como "pederasta passivo e habitual na prática de vícios contra a natureza".
Fogaça só foi libertado, em liberdade condicional, ao fim de 10 anos, em 1970 e, após a revolução do 25 de Abril de 1974, presidiu à Comissão Administrativa da Câmara do Cadaval.
Depois da Revolução, surgiram alguns movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, mas acabaram esmagados pelo preconceito da época que imperava até entre algumas gentes de esquerda e consideradas mais liberais.
Para a história ficou o momento em que um membro da Junta de Salvação Nacional, o general Galvão de Melo, disse na televisão que a Revolução não tinha sido feita para "prostitutas" e "homossexuais".
Assim, só em 1982 é que a homossexualidade deixou de ser considerada crime.
E foi só depois do aparecimento dos primeiros casos de SIDA em Portugal, e nomeadamente após a morte do cantor António Variações, fruto de complicações associadas à doença infecciosa, em 1984, que a questão homossexual ganhou outra dimensão e outro respeito, com a intervenção educativa e sensibilizadora da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA e da associação Abraço.
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)