08 março, 2022 GAT Almada e GAT Setúbal têm saúde de trabalhadorXs do sexo e migrantes como prioridade
Nova reportagem do Especial Associações que prestam apoio a trabalhadorXs do sexo.
As unidades do GAT (Grupo de Ativistas em Tratamentos) de Setúbal e de Almada são as protagonistas deste mês, no âmbito do Especial Associações que prestam apoio a trabalhadorXs do sexo, numa parceria entre o Blog X e o Plano AproXima. Vem descobrir como estes centros de base comunitária ajudam quem faz Trabalho Sexual e a população em geral.
As unidades do GAT em Setúbal e em Almada estão abertas à população em geral, mas estão focadas, sobretudo, nas populações vulneráveis, incluindo trabalhadorXs do sexo e migrantes.
Assim, entre os serviços oferecidos, estão os rastreios rápidos, confidenciais e gratuitos para as infeções pelo VIH, hepatites B e C, e para a sífilis.
No caso da sífilis, o tratamento pode ser feito no próprio GAT, mas nas outras infeções, quando há casos reativos são encaminhados para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), para facilitar o acesso a consultas e a tratamentos.
Além disso, distribuem material preventivo, nomeadamente preservativos internos e externos, lubrificantes e outros produtos.
Por outro lado, os profissionais destas unidades também acompanham quem precisa a consultas e exames médicos, apoiando as pessoas na área da saúde para que "lutem pelos seus direitos" e tenham "acesso à medicação" de que precisam, como vinca a coordenadora do GAT Setúbal, a enfermeira Ana Correia, em declarações ao Classificados X.
Além desse acompanhamento, também fornecem apoio social no acesso aos cuidados de saúde.
GAT Setúbal conta com apoio logístico da Câmara
O GAT Setúbal foi o primeiro centro de rastreio do GAT a abrir em toda a Península de Setúbal. Funciona nas antigas instalações de uma farmácia, na Avenida da Bela Vista, e resulta de uma "parceria comunitária em termos logísticos" com a Câmara de Setúbal, no âmbito do projeto "Nosso Bairro Nossa Cidade”, como explica Ana Correia.
Este projeto autárquico ajuda a fazer "a ponte com a comunidade do bairro", para chegar "mais facilmente" às pessoas e para que os técnicos do GAT não sejam vistos "como estranhos", nota ainda a enfermeira.
Além da própria Ana Correia, a equipa do GAT Setúbal é constituída pelo assistente social Diogo Ladeira, pela mediadora comunitária Inês Fernandes, pelas médicas Isabel Casella e Maria Lima, e pela responsável clínica Virginia Moneti.
A equipa integra ainda a técnica de redução de riscos Adriana Reis que atua, sobretudo, no âmbito da prevenção de Infeções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e do consumo de substâncias.
Recentemente, o grupo de trabalho foi ainda reforçado com uma médica que realiza consultas de enfermagem de ISTs desde o mês de fevereiro. Trata-se de um serviço que constitui uma mais-valia adicional para quem procurar o GAT Setúbal, sobretudo quando o acesso ao SNS pode ser tão complicado e demorado.
Além destas valências, o GAT Setúbal também promove o aconselhamento por pares, através de "pessoas que já estiveram ou estão na mesma situação das pessoas que recebemos", como salienta Ana Correia.
Deste modo, é possível "chegar melhor às pessoas" porque estes pares já tiveram as mesmas vivências, o que ajuda "na questão da empatia", a "colocar-se no lugar do outro" e a transmitir maior "confiança", acrescenta a enfermeira.
"Quando solicitados também vamos a casa de trabalhadorXs do sexo fazer rastreios", realça ainda a coordenadora do GAT Setúbal, notando que isso ocorre, por exemplo, quando "as pessoas têm dificuldades em deslocar-se", para "facilitar" o acesso aos serviços. Nestes casos, é preciso fazer sempre um agendamento prévio.
GAT Almada tem primeira consulta descentralizada de PrEP do país
No GAT Almada, é possível encontrar serviços semelhantes aos prestados pelo GAT Setúbal, nomeadamente os rastreios rápidos e a distribuição de preservativos.
Contudo, esta unidade também disponibiliza uma consulta descentralizada de PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), medicação que visa prevenir a infeção por VIH e que se deve tomar antes de manter um comportamento de risco.
"É a primeira consulta descentralizada de PrEP a nível nacional", sublinha ao Classificados X a cocoordenadora do GAT Almada, a assistente social Fátima Gomes.
Esta iniciativa surgiu como uma "necessidade identificada pelo Fast Track Cities Almada – Iniciativa Almada Município sem SIDA" e resulta de uma parceria entre a Câmara de Almada, o Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Almada-Seixal, o Hospital Garcia da Orta (HGO) e o GAT, refere ainda Fátima Gomes.
A Fast Track Cities foi lançada pelas Nações Unidas em 2015, e visa envolver as entidades governamentais, as instituições de saúde e entidades da sociedade civil no combate ao VIH.
Para terem acesso à PrEP, as pessoas têm, habitualmente, que ir aos hospitais. Muitas das associações de rede comunitária que existem pelo país costumam encaminhar as pessoas para o SNS, para terem acesso à consulta especializada e à medicação.
Mas no GAT Almada "as pessoas têm acesso a esta consulta no âmbito comunitário", ou seja, nas próprias instalações da entidade, reforça Fátima Gomes. As pessoas são exclusivamente encaminhadas para esta unidade por outros serviços do GAT.
"A ideia é acelerar o acesso a estas consultas", num espaço mais amigável e "sem burocracias", explica Fátima Gomes, notando que há "uma lista de espera de seis meses para as consultas de PrEP em alguns hospitais".
"Em Lisboa, até excede os seis meses", de acordo com Ana Correia que nota que, em Setúbal, a espera é de "três a quatro meses, no máximo".
Deste modo, a consulta descentralizada do GAT Almada "vem ajudar muito ao acesso, até porque as pessoas sentem-se muito mais à vontade connosco do que num hospital", aponta ainda a enfermeira.
Ana Correia explica também que estas listas de espera se justificam pelo facto de as consultas serem dadas por "médicos infeciologistas" que têm um horário geral, onde precisam de encaixar as consultas de PrEP.
Em alguns hospitais, há "dias específicos" para essas consultas, o que torna ainda mais "difícil” o acesso, nota a coordenadora do GAT Setúbal.
Descentralizar mais para ajudar melhor
Estas "respostas inovadoras" e "facilitadoras para todas as pessoas", como a consulta descentralizada de PrEP do GAT Almada, são fundamentais porque "o importante para combater as doenças é prevenir que elas cheguem a existir", realça Fátima Gomes.
Contudo, Ana Correia considera que o processo poderia ainda ser mais descentralizado se as pessoas pudessem levantar a medicação diretamente no GAT Almada.
Neste momento, "as pessoas fazem análises no GAT Almada, fazem a consulta, mas depois quando têm de fazer a medicação, têm de levantá-la no hospital", refere, concluindo que "estamos a um passo ótimo do que é o ideal".
De resto, a coordenadora do GAT Setúbal defende que a consulta descentralizada de PrEP "devia ser replicada a nível nacional com a maior brevidade possível". É, aliás, um dos serviços que Ana Correia "mais quer" no GAT Setúbal, como assume.
O seu desejo, como coordenadora deste espaço, é que "consultas de muitas outras coisas" fossem também "descentralizadas", por exemplo, no caso das hepatites virais.
A partir do mês de março, o GAT Almada também deverá passar a ter, "se tudo correr bem", consultas descentralizadas de hepatites B e C, como revela Fátima Gomes.
Em Lisboa, também já é possível fazer a confirmação do rastreio e levantar a medicação da hepatite C no GAT Mouraria. Portanto, já se "faz todo o processo fora do hospital" e isso "devia ser replicado porque, em termos de sucesso, de adesão à medicação e ao tratamento, é muito maior se for feito num espaço comunitário", defende Ana Correia.
"Às vezes, trabalhamos com pessoas para quem ir ao hospital é um processo complicado", explica a enfermeira, considerando que "é tudo mais formal" e, logo, mais complexo para populações vulneráveis.
Garantir atuação mais rápida dos profissionais do SNS
A falta de sensibilidade, e até o desconhecimento, dos profissionais de saúde para lidar com estas comunidades é uma preocupação que Ana Correia e Fátima Gomes partilham.
Deste modo, uma das missões do GAT passa igualmente por promover a "literacia na saúde, não só dos utentes, mas também dos profissionais", como realça a assistente social.
Esta responsável lamenta que, "às vezes, é tão complicado fazer a inscrição dos utentes nos Centros de Saúde", mesmo que as pessoas tenham esse direito. "É preciso haver uma instituição por trás para acompanhar estas pessoas, para fazer reclamações constantemente", lamenta Fátima Gomes.
"Não há uma uniformização nos serviços de saúde", queixa-se também a cocoordenadora do GAT Almada.
Já Ana Correia sublinha que "há muito desconhecimento nas urgências hospitalares" quanto a certas questões, como, por exemplo, a PPE (Profilaxia Pós-Exposição), medicação de urgência que visa reduzir os riscos de infeção por VIH depois de um comportamento de risco - por exemplo, quando o preservativo rebenta.
"Nas urgências, é algo que está fechado a sete chaves", lamenta a enfermeira, realçando que "às vezes, há profissionais de saúde que não sabem que existe".
Assim, as duas responsáveis defendem uma melhor formação dos profissionais de saúde e dos técnicos administrativos do SNS para que atuem de "forma mais rápida e normalizada".
Ana Correia revela que, antes da pandemia e no sentido de agilizar processos, o GAT firmou uma parceria com a USF (Unidade de Saúde Familiar) da Cova da Piedade, em Almada, para permitir uma "via verde de acesso a pessoas em situação irregular sem número de utente, para criar o registo e para terem consultas abertas, vacinações da hepatite B", entre outros serviços.
Entretanto, esse protocolo vai ser replicado no ACES Arrábida, em Setúbal, o que "vai ser muito importante" para ajudar mais pessoas, destaca Ana Correia.
Nova sede do GAT Almada vai permitir "alargar serviços"
O GAT Almada está a funcionar, nesta altura, em instalações temporárias. Mas, a partir de junho", vai ter um espaço físico próprio, o que vai permitir "alargar ainda mais os serviços" prestados, como nota Fátima Gomes.
A assistente social destaca que a inauguração desse espaço vai permitir "incrementar as respostas" oferecidas à comunidade, nomeadamente “alargar para as consultas médicas de ISTs".
A coordenação do GAT Almada é dividida entre Fátima Gomes e a enfermeira Inês Correia que também é a representante do GAT na Fast Track Cities Almada. A equipa é ainda constituída pela coordenadora clínica Virginia Monetti, pela enfermeira Joelsy Pacheco, pela médica do HGO Daniela Lages e pelo mediador comunitário de saúde Bruno Pinto.
Fátima Gomes é também coordenadora da unidade móvel do GAT Almada que funciona exclusivamente neste concelho, às segundas-feiras e terças-feiras, numa parceria com a Câmara Municipal da cidade.
Esta unidade móvel permite "estar mais junto da população nos vários locais, ir diretamente aos bairros, o que é muito importante para levar este tipo de respostas às pessoas que não sabem que existe", realça a assistente social.
O objetivo para o futuro próximo é reforçar os testes rápidos e "aumentar o número de pessoas que está em tratamento", bem como promover o "combate à discriminação e ao estigma de quem vive com este tipo de infeções", realça ainda Fátima Gomes.
Pandemia obrigou a "fazer omeletes sem ovos"
No seu dia a dia, os técnicos do GAT deparam-se com diversos desafios, mas um dos principais deve-se ao facto de "não haver uma regularização do Trabalho Sexual", segundo refere Ana Correia.
A enfermeira nota que há "um vazio legal", o que, aliado a um tipo de atividade que "não é bem vista por uma grande parte da população", leva a que Xs trabalhadorXs sexuais "sejam ainda mais precáriXs".
"Toda a gente sabe que, em Portugal, existe Trabalho Sexual, sempre existiu e sempre vai existir", mas só no trabalho com estas populações é que se percebem "mais as dificuldades que enfrentam" e o "estigma e o preconceito" associados, destaca ainda a coordenadora do GAT Setúbal.
Ora, "se a situação da pessoa é precária, não vai ter um bom acesso à saúde, se há estigma, não vai conseguir dizer que tem esse trabalho e não vai ser ajudada convenientemente", acrescenta.
A pandemia de covid-19 veio pôr a nu ainda mais essa precariedade e foi um período especialmente desafiante para quem atua na área social, sobretudo durante os períodos de confinamento em que "muita gente passou por extremas dificuldades", nota Fátima Gomes.
A assistente social repara que "cada vez mais, havia mais pessoas para ajudar" e os apoios alimentares disponíveis eram os mesmos. Então, "o trabalho social teve que se reinventar, fazer omeletes sem ovos", para poder ajudar toda a gente.
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Especial Associações - Anda conhecer melhor quem apoia trabalhadorxs do sexo:
Gina Maria
Jornalista de formação e escritora por paixão, escreve sobre sexualidade, Trabalho Sexual e questões ligadas à realidade de profissionais do sexo.
"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo para a ajudar a levantar-se." [versão de citação de Gabriel García Márquez]
+ ginamariaxxx@gmail.com (vendas e propostas sexuais dispensam-se, por favor! Opiniões, críticas construtivas e sugestões são sempre bem-vindas)