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23 January, 2025 Verónica à janela

Num bairro pequeno, qualquer pequena história se faz grande, e assim aconteceu com Verónica.

No café, alcunharam-na de “Carochinha”, e outros, que eram mais velhos e se lembravam de certa novela que nos anos 70 cativou os portugueses, chamavam-lhe “Glória”, em homenagem à personagem que passava os dias à janela, mostrando as voluptuosas tetas espremidas dentro do decote.

Verónica à janela

No entanto, o seu verdadeiro nome, que ninguém conhecia, era Verónica.

Num bairro pequeno, qualquer pequena história se faz grande, e assim aconteceu com Verónica. Ninguém se lembra de como apareceu, ou deu que ela para ali se mudasse.

Simplesmente, um dia acordaram e viram-na à janela dum segundo-andar, longe demais para lhe discernirem particularidades da fisionomia, mas perto o suficiente para a imaginarem atraente.

E, desde essa data, ali ficara a maior parte do tempo, ostentando as generosas mamas assentes na tábua da varanda, desde manhã até à noite. Só fechava a janela quando deixavam de passar pessoas na rua.

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De não saberem nada, puseram-se a imaginar tudo e assim se fizeram várias versões sobre as suas origens e historial. Uns inventaram que se escondia de algo, outros que fugia de alguém, e havia ainda quem suspeitasse de isolamento auto-infligido, religioso ou talvez casto.

Coisa boa é que não podia ser, isso era certo. Ninguém de livre vontade se iria acantonar em sítio tão sem graça, muito menos uma mulher na flor da idade.

Claro que isso da flor da idade era discutível, Verónica já passara e muito dos 40, mas lá está, a distância da janela para a rua disfarçava muita vida.

Poucos eram os que simplesmente a ignoravam, comentando que fosse quem fosse, tinha direito a fazer o que lhe desse na real gana e ninguém tinha nada com isso. Mas até esses olhavam de soslaio para a sua beleza distante, que tantos sentimentos inspirava.

Se não se viam no concreto as cicatrizes e rachaduras da sua expressão, os seus opulentos seios, sempre generosamente expostos, eram uma estampa a que ninguém conseguia passar indiferente.

Querendo ou não querendo, acabou Verónica por se tornar uma espécie de ex-libris do pequeno bairro, chegando a sua notoriedade inclusivamente a bairros vizinhos, que em romaria discreta se deslocavam para ver a bela mulher tímida que nunca saía de casa e passava os dias, com ar sonhador, a mostrar as mamas à janela.

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Isso sim, nem os que a vigiavam de longe, nem os que a ignoravam de perto, se atreveram um dia a bater-lhe à porta e a fazer-se convidados, mais não fosse para se apresentarem. E assim, sem saberem, iam construindo a solidão de Verónica, que dia após dia, via fracassar o seu evidente (pensava ela) convite público.

Verónica tinha rituais simples. Gostava de acordar cedo, mal a luz deixava ver pela janela, mas ainda sem a abrir. Depois fechava-se na casa de banho a fazer a sua higiene.

Era obcecada por todas as pilosidades indesejadas que teimavam em poluir o seu corpo e passava muito tempo a escanhoá-las rente, tão rente que no final, a pele parecia algodão.

Daí ia para o banho de imersão, onde se marinava com uma solução de flores silvestres, até que o perfume se entranhasse tanto na superfície como nas suas concavidades sensuais.

Em seguida, besuntava-se de alto a baixo com creme de baba de caracol. Esse era o segredo da longevidade da sua tez e gostava de dar duas demãos nas partes íntimas e nos seios, que depois haveriam de resplandecer, reflectindo o sol que batia na janela.

Finalmente, penteava longamente os cabelos, com a suavidade de mãos alheias que penteiam com receio de magoar.

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Não bastava estar pronta, precisava sentir-se pronta. Só aí Verónica se via ao espelho e, em caso de aprovação, abria as portadas, deixando que o calor do sol entrasse no aposento e pousasse na área exposta do seu decote, aquecendo assim o corpo e o tecido dos seus dias solitários.

Lá em baixo, sem nada entenderem dos seus ritos, diziam-na indiferente, não fosse assim, com certeza já teria escolhido com quem se enrabichar, o que não faltava na rua eram pretendentes, fossem ricos, ou sem ter onde cair mortos, conforme a necessidade ou a preferência.

Se não o fazia, era porque não lhe interessavam os homens, por isso se punha a olhar de alto para eles. Provavelmente, a sua reclusão até vinha de males de amor, como é recorrente nas mulheres. E assim a rejeitavam, pensando ser ela a rejeitá-los.

Não sabiam como ela, no cimo do seu pedestal, tímida e ardente, esperançosa e sonhadora, tantas vezes com a mão debaixo da saia acariciando o sexo, os desejava!

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Desejava todos de maneira diferente, mas com prazer, abriria a porta a qualquer um deles, se nela ousassem bater.

Desejava os homens anónimos que à porta do café a olhavam com curiosidade, inventando histórias sobre si, mas sem nunca fazerem nada a respeito.

Desejava o carteiro que mimava de piropos as outras mulheres da rua logo ao amanhecer.

Desejava o mecânico que à porta da sua oficina exibia as mãos sujas e os braços suados.

Desejava o polícia de serviço que nunca era o mesmo, quando ele aparecia para fazer a sua ronda.

Desejava os rapazes que passavam para a Universidade, as suas brincadeiras ou os seus namoros desajeitados.

Desejava o velho barbeiro de mãos trementes, sem clientela, meio louco, meio cego, que a mirava às escondidas com os seus olhos injectados enquanto coçava despudoradamente os testículos. Esse era o que se atrevia mais!

Desejava até os maridos que destratavam publicamente as esposas, bestas de homens, animais...

Invejava as mulheres felizes por ser capaz de distinguir no seu sorriso, as que tinham um amante que à noite se deitava sobre elas.

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E empatizava com as outras, as tristes, como ela condenadas ao desamor.

E ainda assim, Verónica não era triste. Sentia-se rica por sentir tantas coisas, por ter tantas ideias na sua cabeça, quando outros, a começar pelos homens que desejava, pareciam ter tão poucos projectos, tão poucas ilusões, tão desconhecidas razões para viver. Pelo menos, Verónica tinha sonhos, e para eles vivia.

Cada dia da sua vida era um mar de emoções, de sentimentos, de vontades e frustrações, e tudo isso a fazia sentir-se viva.

Assim passaram os meses de Verónica na sua janela, sem que nunca um único espectador ocasional, um admirador secreto ou um candidato concreto, lhe fizesse um gesto de aproximação, algo que fizesse disparar os seus sonhos para a mais pequena ilusão de realidade. Até que alguém o fez.

Alguém improvável, desconhecedor dela, como só podia ser.

Quando no café viram o homem rondar a porta da casa de Verónica, fizeram silêncio e levantaram a orelha. Pelo ar, era de certeza caixeiro-viajante, vendedor de Bíblias ou cobrador de impostos. Má rês, portanto.

Logo toda a rua parou, observando a pequena criatura, gorda e atarracada, que se mexia como uma formiguinha apressada, de maleta na mão, hesitante em relação ao seu próprio objectivo.

E depois, tocou à porta e o sobressalto foi geral.

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O silêncio foi de tal ordem que se ouviu o som da campainha sair pela janela.

Depois, algo ainda mais inaudito aconteceu: Verónica meteu-se para dentro e desapareceu, deixando a janela escancarada e, por uma vez, despida da sua portadora!

Espanto geral! Durante largos momentos, ninguém ousou dizer palavra.

O tempo passou, passou e continuou a passar, e foi a falta de movimento e de novidades que sugeriu, sem dúvida nenhuma, uma explicação para o facto. Um dos homens na esplanada, de copo na mão, verbalizou:

– Parece que a Glória arranjou companhia...

A confirmação chegou no acto seguinte: a mão invisível de Verónica fez uma última e fugaz aparição, apenas para fechar a janela!

– Finalmente, a Carochinha encontrou um João Ratão! –  riu outro homem.

A primeira reação de todos foi um sorriso marialva, como competia a qualquer boa sugestão sexual. A esse sorriso foi reunir-se uma certa cumplicidade, porque se era verdade que ninguém conhecia realmente Verónica, não o era menos que todos a conheciam de não a conhecerem, o que, de certa forma enviesada, a tornava familiar.

Daí que se congratularam com a sorte que finalmente lhe calhou.

No entanto, com o tempo a passar e sem notícias do homem, as reações foram mudando.

De repente, todos sentiam ciúmes daquele desconhecido que se atrevera a ir onde nenhum deles sequer imaginara tentar, e lutavam agora com um arrependimento que os tirava do sério. Visualizavam a cena e perguntavam-se porque não eram eles os sortudos que dormiam nos braços de Verónica.

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Porque não eram suas as mãos que lhes acariciavam os carnudos seios? Porque raio de insólita razão não eram seus os dedos que tocaram na campainha daquela bela mulher que, durante tantos meses, se mostrou disponível para todos?!

Acabaram a travar-se de razões, disputando entre si os méritos e direitos que cada um considerava deter acima dos demais sobre as delícias que adivinhavam Verónica dispensar, naquele mesmíssimo momento e tão distante de todos eles, ao felizardo vendedor ambulante.

A noite só não acabou em zaragata porque no derradeiro momento, na falta de melhor alternativa, concordaram todos em não ser ela merecedora de nenhum deles - uma promíscua era o que ela era! Onde é que já se vira uma mulher dar-se assim ao primeiro que aparece, ainda por cima tão atarracado e pouco atraente!

Não só não tinha escrúpulos como provava não ter critério, mulher vulgar, uma oferecida, não tinha outro nome!

Bem vistas as coisas, nem as mamas deviam ser verdadeiras, a medicina agora fazia milagres... Portanto, em resumo, uma falsa.

Nos dias seguintes, não falaram dela. Quiseram esquecê-la.

Fingiram normalidades, mas não tiraram os olhos da porta de Verónica à espera de ver sair o feliz premiado. O que não aconteceu nem quando a semana acabou, o fim-de-semana se passou e nova semana começou.

Então, começaram a olhar uns para os outros e a torcer o nariz. Algo mais que sexo se passava - especulava-se sobre jogo sujo ou hipótese criminal.

– A Carochinha fez-lhe a folha – disse um.

– Já era – confirmou outro

– Fez-lhe a folha e já era – resumiu um último, por falta de opinião original.

– Agora é que a vamos ver sair de casa, a largar os sacos.

– Ela é esperta. Desfá-lo em casa e deita os bocados na sanita...

Assim discorreram em eufemismos e estratégias, até aparecer na esquina o polícia de serviço para fazer a sua ronda. Contaram-lhe as suas suspeitas de homicídio, acrescentando certezas várias, pelo que não teve outro remédio o atónito agente se não meter o pé na porta até fazê-la cair.

Subiram todos a escadaria, por uma vez dispostos a executar o convite que tantos meses rejeitaram, até adentrarem na sala vazia, onde a janela de Verónica, de cortinas tristes pela sua ausência, permanecia fechada. E foi aí que ouviram os sons que saíam do quarto contíguo...

Eram gemidos abafados, de bicho em sofrimento, seguidos de um golpe de ar rasgado e um estalo metálico, que se repetiam por esta ordem numa cadência certa, mas impossível de designar.

Fosse o que fosse, nenhum dos presentes alguma vez tinha ouvido sequência igual.

Sem mais demoras, irromperam pelo quarto com poses de salvamento, e testemunharam a imagem nunca mais repetida, mas que ainda assim, haveria de fazer história no bairro.

Todo nu, de joelhos na cama e rabo para o ar, o anafado vendedor ambulante era sodomizado pelo pénis descomunal da transexual Verónica que com um chicote na mão, vergastava energicamente as nádegas do bom homem, que vibrava em delírio surdo de prazer!

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Ficaram a olhar uns para os outros o erótico quadro imobilizado num instantâneo para mais tarde recordar, e a mole de testemunhas de boca aberta e queixo caído.

Como nem o polícia foi capaz de encontrar as palavras que se impunham à circunstância, foi o farmacêutico que serviu de porta-voz - talvez por ser o mais experiente em casos raros:

– As nossas desculpas pela intromissão. Não se incomodem, nós achamos a saída...

Assim como tinham entrado, saíram todos juntos, mas agora pé ante pé, como se pisassem uvas, cabisbaixos de vergonha, quer pelas suspeitas infundadas, quer pela indiscrição levada a cabo na rompante invasão.

Nenhum deles voltou alguma vez a falar do sucedido, e só quando os seus olhares se encontravam, os seus pensamentos eram concordantes.

Quando lhes perguntaram cá fora o que se tinha passado lá dentro, sem se combinarem, deram todos a mesma resposta:

– É lá com eles. Ninguém tem nada com isso.

E nesta solidariedade tácita, morreram os rumores e invenções sobre a Carochinha.

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Agora que é noiva, Verónica já não deseja tanto os homens. Ainda vai à janela, mas menos do que antigamente.

E quando aparece, todos no bairro, homens ou mulheres, lhe tiram o chapéu, ou acenam com a cabeça, em sinal de respeito.

Armando Sarilhos

Armando Sarilhos

Armando Sarilhos

O cérebro é o órgão sexual mais poderoso do ser humano. É nele que tudo começa: os nossos desejos, as nossas fantasias, os nossos devaneios. Por isso me atiro às histórias como me atiro ao sexo: de cabeça.

Na escrita é a mente que viaja, mas a resposta física é real. Assim como no sexo, tudo é animal, mas com ciência. Aqui só com palavras. Mas com a mesma tesão.

Críticas, sugestões para contos ou outras, contactar: armando.sarilhos.xx@gmail.com

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